terça-feira, 6 de agosto de 2024

 

Nós e o bolivariano


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

Políticos que conhecem o andar da História não gostam de brigar com agosto. Por obra de fatalidades ou meras superstições, é mês colecionador de mau agouro, como se apreciasse atrair para si, do resto do ano, a capacidade de desafiar o destino de quem está com o poder nas mãos, mesmo que isso tenha levado a tragédias, algumas já bastante conhecidas. Para se prevenir e escapar desse infausto, o presidente Lula terá, antes de tudo, de desvencilhar-se dos maus lençóis com que se cobriu na crise venezuelana; crise que, entre outros incômodos, o colocou em campo oposto às democracias mais sólidas, seriamente preocupadas com a Venezuela, onde um arremedo de eleição deu terceiro mandato a Nicolás Maduro. Defensor e simpático ao insidioso ditador vizinho, o companheiro brasileiro envolveu-se, tão profundamente, no episódio, que ficou difícil uma saída honrosa, ou, no mínimo, menos acidentada: ou abandona o amigo, e, nesse caso, aborrece a russos, chineses e às esquerdas radicais do continente, ou faz as pazes com a democracia na América, desculpando-se pela precipitação, que o levou a dizer que a eleição venezuelana foi normal e sem fraude. Pois teve coragem em dizer isso, na contramão do resto do mundo civilizado, diante de um pleito eivado de vícios, mapas e números deturpados, oposicionistas presos, fiscais de partidos e observadores impedidos de acompanhar a contagem dos votos.
As coisas muitas vezes pioram, quando o presidente fala; e desta vez, quando tomou a iniciativa de empurrar um posicionamento final e oficial em relação ao processo de Caracas, no aguardo da divulgação dos mapas de votação. O que, num gesto de generosidade sem limites, é o mesmo que dar a Maduro tempo para organizar os mapas a seu talante, num esforço hercúleo para explicar a reeleição que não houve.
(Se Maduro tem certeza da vitória que apregoa, por que tanta demora na publicação dos boletins, que diz serem favoráveis? É uma indagação espalhada em todas as direções, e certamente instigando diplomatas do Itamaraty, que se esforçam para não contrariar o governo, do qual fazem parte)
Um detalhe para comprovar a enganação. Não ignora Lula, como não ignoram os governos sérios, que, em Caracas, a elaboração dos mapas foi abruptamente interrompida no exato momento em que o candidato oposicionista aproximou-se dos 70%. Deu-se, ato contínuo, a criminosa conversão dos números: quem perdia passou a ganhar, quem ganhava caiu para o  segundo lugar. Desnecessário esperar por indícios e outras provas, até porque, em qualquer crime, a demora é sempre propícia ao criminoso.
O presidente sabe perfeitamente como é possível fazer isso. Depois, não com menos coragem, sugeriu, com sinais de pilhéria, que os descontentes venezuelanos fossem reclamar na Justiça. O mesmo que, voltando no tempo, sugerisse que Cristo recorresse a Pilatos contra a condenação ao Calvário… Ora, não precisamos sair daqui para saber que o Judiciário tem como fazer política a favor do poder. Graças a isso, a Venezuela tem presos políticos. Aqui também temos. Constrangimentos na liberdade de expressão os venezuelanos têm, e nós atestamos como isso dói, por experiência própria.
Como então posicionar o Brasil frente ao futuro da Venezuela? Persistindo a montagem da vitória de Maduro, o país teria de manter a aliança, o que certamente custaria muito caro para as nossas relações. Ou, como já se disse, esquecemos o ditador, e, nesse caso, abre-se um abismo diante das esquerdas do continente, aí, de carona, metade do Partido dos Trabalhadores, partido do governo, que, tanto como Lula, conseguiu enxergar naquela eleição um exemplo de lisura.
Para mudar ou persistir, na encruzilhada de agosto, o Planalto precisa definir com clareza, antes de tudo, as responsabilidades dos agentes na condução da política externa, ante a delicadeza que a crise vizinha sugere. Esclarecer, de vez, a quem o governo deve confiar os trâmites, o que vai incluir, a longo prazo, conversação proveitosa e paciente com os presidentes que torceram o nariz, ao reagirem ao equívoco brasileiro. A quem passar o encargo? Ao assessor de confiança, Celso Amorim, credenciado por Lula para conversar, sem assinar, ou confiar tudo ao condescendente ministro Mauro Vieira?, que não se sente diminuído na estranha divisão de responsabilidades.

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