terça-feira, 27 de agosto de 2024

 



Missão pós-Lira

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil"))

Dentro de quatro meses renova-se a presidência da Câmara dos Deputados, tempo suficiente dado aos partidos e suas bancadas para uma reflexão cuidadosa sobre os desafios que aguardam o sucessor de Artur Lira; desafios que não serão poucos. A começar por ter de reconhecer que a Casa precisa trabalhar para reconstruir um pouco, pelo menos um pouco, do perdido prestígio junto à opinião pública, problema que se revelou mais crítico no episódio das emendas, já de duvidosa inspiração em tempos passados, muito mais agora, quando elas se fizeram proteger pelo escandaloso segredo de suas destinações. Não há brasileiro, suficientemente informado, que não perceba o real destino das emendas chamadas impositivas, poderoso instrumento de reeleição dos doadores, bilhões de reais que correm o Brasil em campanha de votos, sem a indispensável transparência. A criminosa caminhada apenas perdeu a volúpia e a promessa de um pouco de transparência e rastreabilidade, depois de uma aventura monocrática do ministro Flávio Dino, que desembarcou na competência do Congresso, de bisturi em punho. Algo semelhante a uma operação cesária, ao que os parlamentares reagiram com protestos, dores lancinantes e certeza de retaliações.
Ao descrédito do Legislativo soma-se enorme decepção da sociedade com o festival de verbas distribuídas entre favoritos. Diluiu-se o respeito minimamente devido.
A Câmara, mesmo que responsável pelo mal praticado, terá de fazer alguma coisa, nos meses vindouros, para reduzir os desgastes que vem sofrendo, como claramente demonstrado está na intensa medição de suas forças com os outros dois poderes. Sai ferida da refrega, e nem por isso o povo sente muito dó.
O novo presidente terá de pensar em algo propositivo, capaz de animar o país. Fazer o que tem de ser feito. Dito assim, parece apenas martelar o óbvio, mas o que se impõe é assumir o que cabe à Casa legislativa, com alguma coragem para romper vícios políticos carcomidos, discussões ranzinzas e improdutivas. Por exemplo: há, nas comissões, uma fartura de proposituras com prazo vencido, sem qualquer validade, mas ocupando tempo e espaço. É preciso sanear, da mesma forma como se impõe adotar medidas capazes de agilitar as tramitações. A Câmara dos Deputados custa muito a decidir, consome mais tempo que o razoável para transformar em lei bons projetos ou arquivar os imprestáveis. Morosa, contrasta com a sociedade que, muitas vezes dependendo dela, tem pressa para avançar.
Ao perceber que ali caminham morosidade e insegurança, o Supremo Tribunal sente-se no dever, discutível, de incursionar no campo político; entra em cena para fazer o que deputados e senadores custam fazer. E, depois, vem a grita geral contra a invasão do domicílio das competências.
Ainda na pauta de quem for para a presidência da Mesa, desafia uma situação que se evidencia no governo Lula. O Legislativo, aí também contado o concurso do Senado Federal, passou a ser, entre os três poderes constituídos, a vítima do consórcio político que une Executivo e Judiciário. Sempre unidos, não raro costumam passar ao largo, distantes dos responsáveis pelas leis, assumindo atribuições confiscadas ao Legislativo. A Presidência da República, que ficou devendo ao Supremo Tribunal os gestos de boa vontade que facilitaram a caminhada de Lula, vinga-se do Centrão, das exigências, das ameaças e tenta escapar das culpas; e, por vias indiretas, vai ao STF tirar castanhas com mão de gato. Assim, no jogo dos poderes, o Planalto e o Supremo vão destinando ao Congresso o papel do patinho feio.
Seria entediante enumerar as pesadas causas que aguardam o sucessor do deputado Lira. Mas não se ignore, entre as urgências, a indispensável revisão do modelo que a Câmara adotou para trocar favores com a Presidência da República, fazendo do Centrão o pragmático negociador, presença constante no balcão de conveniências, onde votos em comissões e plenário custam cargos no primeiro e segundo escalões, com uma insolência e despudor desmedidos. Esse modelo tem a competência de denegrir os que dele participam, para vender ou para comprar. É preciso acabar com isso. Mas, reconheça-se, o homem que vier tem de ser corajoso demais, porque os maus interesses já plantaram raízes profundas.

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