terça-feira, 16 de maio de 2023

 

A tarefa da interlocução



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil"))

Talvez não seja apropriado o presidente da República envolver-se pessoalmente nas articulações políticas junto às bancadas da base, uma incursão que prometeu, depois reconsiderou, mas pode retomá-la mais uma vez, premido por dificuldades crescentes de seus emissários em dar conta do recado. A principal razão, entre outras, é que um presidente representa o estágio final, derradeiro, em quaisquer negociações; porque, acima dele, ninguém mais reúne poderes para dialogar e acertar os ponteiros de relógios desencontrados. Fracassando no embate pessoal, torna-se inevitável o aumento da penumbra sobre as relações com o Congresso. Se seus timoneiros não satisfazem na delicada missão de articular, cabe trocá-los ou ampliar para outros gabinetes a tarefa de conversar. Mas nunca seu envolvimento pessoal.

Sobre as dificuldades que vêm prosperando nesse campo, convém observar que as duas casas legislativas se ressentem muito da intimidade e das amizades, cada vez mais evidentes, entre Executivo e Judiciário. Hoje, objetivamente, os chamados poderes tripartites caminham para se reduzirem a dois, com o Congresso alijado. Deputados e senadores veem-se postergados, enquanto o presidente da República e ministros são tratados fraternalmente no Supremo Tribunal, muitas vezes dividindo entre si questões que são naturalmente da órbita do Congresso.

Na esteira do impasse parece claro, portanto, que as questões negociáveis não se restringem ao preenchimento de cargos e liberação de emendas generosas. Isso pesa, mas não é tudo. Há um clima de ciúmes misturado com os temores de progressiva invasão de atribuições. O presidente devia refletir sobre as reais origens de dificuldades ocultas que atormentam seu governo.

Lição da Lei Kandir

Prefeitos de grandes e pequenos municípios preferem guardar reservas em relação a certos pontos da proposta de nova política tributária em tramitação no Congresso. E prometem acionar deputados para que estejam atentos diante do perigo das ciladas. É o caso, que tanto preocupa, de transformar o ISS como parte do IVA – Imposto sobre Valor Agregado, o que tira das prefeituras uma fonte de recolhimento direto e imediato, à mão para muitas despesas, que não podem esperar sinais e boa vontade dos governos estadual e federal.

Aos governistas, com quem conversam e levam suas apreensões, os prefeitos ouvem que perdas haverá, mas os municípios contarão com uma espécie de fundo de compensação (sic). A conversa é antiga e não cola mais. Basta lembrar a Kandir ( Lei 87/1996), quando a promessa era idêntica, acenando com incerto fundo reparador, que nunca saiu do papel. Um rombo sangrento na economia dos municípios, pois a novidade isentou o ICMS para exportação de produtos primários e serviços.

A velha compensação caiu na vala comum dos esquecimentos. Escaldados na experiência e na frustração que veio de seus antecessores, os atuais prefeitos não vão mais nessa conversa de remendos para consertar estragos. Querem se antecipar, evitando o problema.

Um problema de cada vez

Já correndo para fechar o quinto mês de seu mandato, se é pouco diante do que ainda tem pela frente, nem por isso o presidente Lula devia, para sua tranquilidade e de todo o país, estabelecer uma escala dos temas mais polêmicos a serem enfrentados, conferindo prioridade aos que dela exigirem. Porque as coisas andam complicadas, tanto nas ações como nos discursos.

E, mais cuidadoso, evitar que os desafios se atropelem, jogados numa pauta sempre fervente, desrespeitando tempo e preferências. Sem uma certa ordem, o governo desorienta-se, fica sem saber por onde começar e como alinhar as forças de defesa e convencimento.

Nas relações da política com a economia, onde Haddad é um principiante como ministro, as frentes tumultuadas são muitas, a começar pela batalha que se trava no Banco Central, onde o governo demoniza os altos juros pelas infelicidades gerais da nação; avança sobre o agronegócio, que é a mais unida e corporativa força produtiva que temos hoje; ao mesmo tempo em que batalha, no Congresso, por uma nova ordem tributária, complexa e suficiente para provocar melindres e poderosos interesses.

Acumulando tudo a um só tempo, estão os desafios no campo da diplomacia. Em apenas 150 dias continua o governo prometendo arcar com responsabilidade para salvar a Argentina de iminente bancarrota, num país com expectativa de fechar o ano com 140% de inflação. Atrai a China, o que, de certa forma, desafia os Estados Unidos, sem saber exatamente como contemporizar. E, se mais não faltasse, entra numa acidentada visão da guerra da Ucrânia, onde os bons propósitos de pacificação são insensíveis a imensos interesses estratégicos americanos, russos e da Europa Ocidental. Mechemos com mãos suaves num vasto ninho de vespas.

( Como hoje é o Dia Internacional da Convivência em Paz, instituído pelas Nações Unidas, propondo a cultura da não violência, espera-se que, coincidentemente, alguma coisa da voz brasileira possa ser ouvida).

Tudo tem seu valor, tudo tem merecimento. Mas é preciso que haja uma certa ordem no encaminhamento, para que o governo não se veja atropelando entre muitos cristais.

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