Eleição no trampolim
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
A conversa que a presidência do PT tem levado ao interior, ainda agora a Minas, é que o processo eleitoral de 2024, sendo importante, precisa eleger o maior número possível de prefeitos, mas sem perder o enfoque na sucessão presidencial, dois anos depois. O que se obtiver, ano que vem, das urnas nas capitais, grandes e médios municípios tem de estar com os olhos e os corações voltados para o Planalto.
Os cuidados com o calendário são algo de que não pode descuidar o partido. Mas, no cenário presente e atual, é um desserviço que se joga nas costas de Lula, por mais que seja bem intencionado o PT, porque, sendo o governo resultado de uma ampla aliança partidária, não convém precipitar pauta excludente totalmente fora de hora. A precipitação, a transformação do próximo pleito em trampolim para o que virá em seguida, é um problema em fornalha adequada para infernizar o mandato de Lula, que se veria, desde já, sujeito a demandas que em nada podem ajudá-lo a enfrentar impasses de natureza política, naturais no contexto de uma aliança que foi generosa para eleger, mas gulosa para cobrar. Mais ainda, os petistas precisam cair na real: o PT é o partido do presidente; o Centrão é o partido do governo.
Se o principal instrumento político da base antecipa discussões e insinua independência nos grupos de apoio entre duas eleições, fica evidente que o presidente da República está condenado a subjugar-se a fatos consequentes e determinantes; pior, sujeito a situações condicionantes que vão sendo criadas no curso das disputas pelo poder no vasto interior do país.
Qualquer eleição, mesmo que distante no calendário, impõe limitações a quem governa. A reeleição, projetada para quatro anos, demostra isso eficazmente. Correndo demais, o Partido dos Trabalhadores, mais fiel que pretenda ser, pode estar dando os primeiros passos para presentear seu líder com um garrote incômodo.
Inimigos estão dispensados
Não se sabe até onde e quando vão sangrar os machucados do recente embate que travaram os ministérios do Meio Ambiente e de Minas, por causa de um projeto de prospecção em distantes águas da foz do Amazonas, embora passíveis de perturbações. O governo, que só ficou sabendo do problema quando se tornou conhecimento público, sinalizou a contemporização, sem garantias de pleno êxito, mas tem tempo para aproveitar-se do episódio e adotar nova política para o meio ambiente, sem a intolerância das ONGs estrangeiras, que dispõem de visível influência sobre a ministra Marina.
A par disso, uma questão que aflora, não menos grave, é que o conflito entre ambientalistas e os caçadores de petróleo cuidou, igualmente e ao mesmo tempo, de mostrar divergências palacianas internas, que, em geral, são o melhor veneno para enfraquecer o governo. As crises domésticas, se chegam às ruas, balançam, antes de tudo, o prestígio do presidente; mais ainda, como agora: ele só ficou sabendo o que todos sabiam.
Já em cima do fato consumado, jogado na fogueira em que ardem os bate-bocas, e de dentro do governo sai o brado da resistência de ministério contra ministério, o presidente é instado pelos próprios colaboradores a se definir, salomonicamente: ou algoz da natureza ou amigo de um projeto de desenvolvimento regional. Uma coisa ou outra. Está em curso o julgamento.
Com amigos ministeriais dessa estirpe, em permanente canibalismo, Lula está dispensado de sair à procura de inimigos. Basta o mais chegado.
A velha impunidade
Na semana passada, para mais uma vez se discutir a necessidade de a Justiça ser rigorosa com os criminosos do trânsito, veio o epílogo do caso Vitor Gurman, em S.Paulo, atropelado e morto por uma motorista embriagada, beneficiada com os recursos procrastinatórios do tribunal. No Brasil, as execuções praticadas pela irresponsabilidade de motoristas tornam-se passíveis de abençoada tolerância. Quando a vítima já está nos ossos, na maioria das vezes o matador é contemplado com o prêmio de uma impunidade, total ou parcial.
Acidentes fatais, nas ruas ou nas estradas, gozam, geralmente, da benevolência, porque os julgadores consideram que sempre têm pela frente casos mais sérios a tratar, deixando para depois as fatalidades irrecorríveis. Se alguém já morreu atropelado, não pode voltar à vida, deixemos o processo para depois. E, quando eles dispuserem de tempo e vagar para prolatar a sentença, já quase tudo no esquecimento, o motorista bêbado ou inabilitado será condenado à pena severíssima de levar cesta básica ao abrigo dos velhinhos; ou prestar um serviço comunitário que ninguém vê.
Acaba que a condenação mais pesada para um criminoso bêbado no trânsito fica por conta da consciência dele. Mera possibilidade, até porque consciência é coisa que não precisa ser testada no bafômetro.
Um tema que a gente devia tratar com seriedade é essa tendência da Justiça de ser tolerante com os delitos, quando os prejuízos causados à vida estão debitados na conta dos consumados.
Lamentavelmente, é a velha tolerância com os vícios e delitos, que devíamos combater e vencer. Coisa antiga, que já preocupava Oliveira Lima, na Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira. Complacência que atribuía aos primeiros portugueses das eras cabralinas, quando somavam-se a quase 250 os delitos a serem tolerados a quem pretendesse chegar à terra recém-descoberta, salvo traidores, hereges e falsificadores de moedas. Alguém que, em Lisboa, depois de beber muito, atropelasse e matasse com a carruagem, estava perdoado. Como hoje em S.Paulo.
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