Covid 19 e a Federação
(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil!” ))
O presidente Bolsonaro permite, não raras vezes, que lhe seja atribuída vaga noção da realidade federativa em que temos de viver, nós brasileiros. É o que se constata na frequência com que bate de frente com os governadores, dos quais tem amplo direito de divergir, desde que isso se faça com um mínimo de liturgia, principalmente quando o discurso entra no campo das suspeitas e depreciações. No final da semana, sem que tenhamos sepultado de vez as esperanças de relações políticas menos tensas e acidentadas, ele criou nova oportunidade para atiçar combustível na fogueira em que já vão ardendo suas precárias relações com executivos estaduais, aos quais acaba de atribuir a cota mais dolorosa das culpas pela proporção que entre nós assumiu a Covid 19. Agora acusando-os de distorcer números sobre a pandemia. Essa irresponsabilidade, levantada assim sem maiores investigações, tem tudo para ampliar o abismo que o separa dos estados, particularmente São Paulo, onde é desafeto declarado do governador Dória.
Formulou o presidente essa denúncia que, filtrada entre vagas insinuações, merece ser averiguada por ter partido da presidência da República, que acusa governadores de tolerar e estimular falsidade nas notificações sobre óbitos tidos como consequência do vírus, embora, segundo ele, fosse a causa-mortis resultante de outras enfermidades várias. Há quem desaconselhe levar em conta a acusação, por entenderem que faz parte do jeitão do presidente lançar palavras ao vento, sem medi-las suficientemente. Mas, mesmo que assim seja, não se subtrai sua responsabilidade pelo que diz. Pergunta-se: e se realmente a sociedade brasileira tem sido grosseiramente enganada quanto à real extensão da pandemia que grassa por todos os cantos? É preciso esclarecer. Se não provado, arque o presidente com as consequências, e seja chamado a explicar a imprudência.
Não se ignora que Bolsonaro esforça-se em dar à Covid 19 certa desimportância, embora agora já não ouse mais reduzi-la a um resfriado passageiro e inconsequente. Porque são 100 mil mortos! a reclamar um mínimo de seriedade e mais prudência nos receituários; sejam os presidenciais ou de pastores engraçados, que pretendem curar a epidemia com feijão abençoado.
Com alguma boa vontade, certas coisas que o presidente diz podem até ser refugadas como tagarelice que joga para plateia festiva. Mas, quando a hora é de uma acusação séria, vê-se o governo na obrigação de esclarecer algo que não pode cair no esquecimento ou no arquivo de declarações impensadas. Em rigor, ao próprio presidente, e ninguém antes dele, deve caber a iniciativa de aprofundar diligência para deixar sua mais recente suspeita em pratos limpos. E, sendo o caso, defender a sociedade da farsa e responsabilizar os criminosos, se realmente eles existem. Não é coisa para cair no esquecimento.
Quando supostas irregularidades cercam questões que dizem respeito à saúde pública, como possíveis distorções nas notificações sobre infectados e mortos no rastro da Covid 19, o ministro competente também tem o dever de não se omitir, mas emitir opinião; tem obrigação de dizer algo, sem o temor de contrariar o presidente, e disso resultar em demissão; até porque sua pasta é mesmo de alta rotatividade... Nova demissão não faria diferença. O que não se admite é a população desinformada e enganada numa guerra feroz, como a que estamos travando neste momento, e contabilizando graves perdas.
Fato paralelo à denúncia, além de quaisquer outros desdobramentos, há que se conter, como se disse no começo, a perigosa obra do Planalto, que criou e procura ampliar o fosso que vem distanciado o poder central de algumas das principais unidades da Federação, a começar pela principal delas. As consequências dessa política de vácuo podem resultar desastrosas. Instala-se um clima de mútuas hostilidades, cujas consequências são a fatura que a população terá de pagar. Mais cedo ou mais tarde.
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