(( Para a Academia Rio Branco, onde a arte de beber e comer com elegância é praticada pelas melhores figuras de Juiz de Fora ))
Foi em meados de 1979. Estava na Editoria do Diário Mercantil, e andava empenhado em contar mais coisas sobre os tempos idos de Juiz de Fora. Sentia que mergulhar em temas do passado mantinha o interesse de leitores fiéis, o que, de certa forma, talvez se possa explicar pelo fato de ser o jornal mais antigo da cidade, circulando desde 1912. Surgiu então a ideia – melhor não podia haver – de uma visita ao memorialista Pedro Nava, no Rio de Janeiro, o que ocorreria poucas semanas depois. E lá fomos. Paulino de Oliveira, Dormevilly Nóbrega, Almir de Oliveira e eu. Murilo Badaró veio de Belo Horizonte para se juntar ao grupo. É de se imaginar a beleza de toda uma tarde de sábado, no Largo São Francisco, com Nava e Paulino remexendo lembranças de fatos e gentes que a poeira do tempo confiou às páginas da história municipal.
Lembro-me como se fosse hoje. Em dado momento, o grande memorista interpelou Paulino:
- E essa conversa que leio por aí, de que Juiz de Fora é onde mais se bebe no Brasil?!
De quando em vez surge essa campanha, e, com a mesma facilidade que vem, vai embora. Mas não totalmente. É uma onda que passa, mas sempre deixa alguma coisa no ar. Imita as águas do Paraibuna, que são assim também. Passam, mas ficam, tal como os grandes amores.
De pronto, Paulino interveio:
- Isso não passa da associação de maldades e desinformação. Não há estatística minimamente confiável para se concluir que lá se bebe mais que em qualquer outra parte do Brasil. Não procede essa campanha de maldades etílicas.
Fato é que isso vem de longe. Remonta mais de século, quando a cidade chegou a ter funcionando, simultaneamente, dez fábricas de cerveja artesanal, o que se deveu à operosidade de famílias
germânicas de São Pedro, Borboleta e Villagem. Era o suficiente para as más línguas sentenciarem: são necessárias dez fábricas para matar a sede daquela gente!… Acrescia que os padres redentoristas da Glória sempre produziram excelente cerveja. Segundo a boca do povo, ela já saía abençoada da igreja: bebiam o pai, o filho e ainda sobrava para suprir o Espírito Santo, estado fiel importador.
Certo é que foi fazendo história. Na noite de 15 de novembro de 1889, no Rio, a chegada da República foi saudada com vinhos e a cerveja José Weiss. Os monarquistas, que eram numerosos (aqui chegaram a morar 29 barões e viscondes!) saudosos no adeus ao imperador, faziam pouco- caso da festa. Republicazinha vagabunda essa, que toma cerveja de subúrbio de Juiz de Fora…
Pior para nossas famas foi quando veio o Congresso Mineiro de 1893, convocado para se debater a localização da nova capital de Minas, porque a velha Ouro Preto não tinha mais como suportar a carga da administração pública. É sabido que a comissão para definir a mudança, criada pelo engenheiro Aarão Reis, indicara cinco como os pontos mais adequados: Curral de Rei; Curvelo, centro geodésico do estado; Vale do Marçal, nas proximidades de São João Del Rei; Barbacena e Juiz de Fora. Os ouropretanos, prestes a ficar sem a sede da capital, cismaram que a principal concorrente era Juiz de Fora, e abriram campanha ferocíssima. O pároco, padre Veloso, distribuía panfletos e fazia sermões conclamando a população a não consumir nossa cerveja, fabricada, segundo inventara, com água de esgoto ou do Paraibuna, já naquela época de águas pouco recomendadas. Além do mais, para o reverendo, Juiz de Fora era terra de analfabetos, desdentados e beberrões. A campanha difamatória só foi terminar quando se decidiu que a capital iria, como de fato foi, para o Curral de Rei.
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Quando era retomada a velha onda da cidade dos beberrões, sempre aparecia alguém com o cuidado de traça o imaginário roteiro dos copos. Principiava-se bebendo a cerveja de São Pedro. Descendo-se pelo Morro da Glória, provava-se o áraki dos sírio-libaneses da Marechal Deodoro, o champanhe dos ricaços do Clube Juiz de Fora, depois o vinho que os jornaleiros guardavam na Casa D’Italia. Rumo à zona Sul, subindo, osanas ao bom uísque jamais ausente no Bom Pastor, e, para terminar a escala, o toque nacional da cachaça da Vila Olavo Costa. Se de La Mancha andasse por aqui, haveria de testemunhar Dom Quixote nossos copos nunca ociosos...
Pois bem. Além da cerveja, que via a cidade dar os primeiros passos, outros produtos haveriam de concorrer para consolidar a fama que despertara a preocupação de Nava. Basta citar dois entre os principais. Primeiro, a caipirinha, que fez história no antigo Bar do Neca, na Galeria João Beraldo. Para que se faça ideia do potencial de consumo, basta lembrar que Neca e seu auxiliar, que, se não há engano, chamava-se Orlando, tinham o braço direito atleticamente musculoso, desproporcional em relação ao esquerdo, resultado do febricitante exercício de passar o dia esmagando limões, gelo e açúcar na cachaça. Há quem advogue inclusão da caipirinha na vasta galeria dos pioneirismos de Juiz de Fora, ao lado da eletricidade de Bernardo. Mas há muitos que contestam, porque seria de outras plagas a invenção.
O segundo desses produtos divulgadores foi o Coquinho do Gaudêncio, inventado na década de 50; aliás, a década de ouro para muitos saudosistas. Cachaça curtida dentro de coco da Bahia, sem outras misturas, mas o coco também tinha tratamento externo, levemente envernizado, antes de permanecer por alguns dias enterrado no quintal. Arrastava multidões para o Alto dos Passos, onde “seu” Gaudêncio mantinha o bar em que pontificavam algumas das melhores expressões da boêmia local. Sobre a história que se guarda desse coquinho, uma quase inconfidência: antigo arcebispo, dom Juvenal, disse certa vez o levaria a Roma, para o papa João Paulo experimentar. Não se sabe se isso de fato aconteceu.
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Não raro, alguns casos pitorescos. Quase sempre para dar força e graça à denúncia de que aqui se bebia em quantidades que nada tinham a ver com a virtude abstêmia. Nosso Murilo Mendes, que engrandeceu a poesia e a prosa nacionais, foi contar para o resto do Brasil e aos europeus algumas das aventuras vividas pelo maior entre os boêmios da cidade, o advogado Amanajós Vilhena de Araújo. Ninguém teria ousado beber mais que ele neste vale do Paraibuna. Pois certa noite, depois de consumir desgarrafadamente na zona boemia, em companhia de senhoritas pouco gentis e nada senhoritas, Amanajós, de volta para casa, atravessou os terrenos do Tupi, onde se armara um circo. Sem suportar o peso da carga etílica, teve de parar e adormecer vizinho do leão, que se chamava Marrusko. Não percebeu que um dos braços tendia para dentro da jaula. Amanheceu ali, sem a tragédia que seria inevitável. Murilo atribui à Providência o fato de o leão ser um velho desdentado e vegetariano…
Bastou que essa história corresse um pedaço do mundo para a maldade ressuscitar a fantasia do nosso ânimo para a bebida. O que se dizia? Em Juiz de Fora tanto se bebe, que se até dá bom dia a leão…
Outra história, esta importada da primeira metade do século 19, vai nos colocar diante do grande cronista e naturalista Richard Burton, autor de Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Passou por aqui, e descansou dos estudos por uma semana, acampado mais ou menos onde hoje está o Vitorino Braga. É de se imaginá-lo próximo ao Paraibuna, dias frios de junho, sob friagem e os ventos gelados soprando, nas madrugadas, as águas do rio. Não haveria de ser de outra forma: percebeu logo que era intenso o consumo de aguardente entre os mais pobres. Os menos pobres se valiam de algum vinho, que não raro se deslocava das mulas que passavam por ali, carregando riquezas rumo às festas nababescas do Barão de Catas Altas. Democraticamente todos bebiam. Não é que o notável viajante seguiu viagem para o Morro Velho, não sem antes deixar valiosa contribuição, líquida e certa – mais líquida que certa – para engrossar a onda contra a cidade bêbada. Pois, numa página que depois enviou a um jornal da corte, disse Burton que, pelo que viu, em Juiz de Fora só não bebem o ovo e o sino: o ovo porque já nasce cheio; o sino porque tem a boca virada pra baixo…
Wilson Cid
jornalista
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