Fim das federações
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
A composição do novo ministério, exatamente por ter se tornado um planalto de disputas entre forças políticas, deixou sinais de que as federações partidárias - quase todas - vão cumprir o destino para elas traçado desde sua regulamentação pela Lei 14.208, de setembro de 2021; isto é, nada mais que a vida efêmera. Observou-se que os partidos federados, disputando espaço para participar do primeiro escalão do governo iniciado, mostraram que, na hora do fogo cruzado dos interesses, cada um quer apenas cuidar da própria pele. É antiga essa prática, sob o ímpeto das batalhas pelo poder.
Das coisas vividas nas últimas semanas de dezembro e na primeira deste ano extraiu-se que essas federações não tiveram expressão suficiente; muito menos levantar voo de Brasília para, nos meses seguintes, desembarcar no vasto interior, onde serão outras, diferenciadas, as regras para a eleição de prefeitos e vereadores em 2024. Uma realidade que se constada desde agora.
É sabido que a eleição nos pequenos municípios, que constituem maioria, é regida por outros hábitos, culturas e humores. E peculiaridades localizadas. É quando as regras são diferentes, e o campo das siglas, por si só, torna-se limitado; a não ser que elas estejam acordadas com os chefes do lugar, porque assim têm como influir. Portanto, no campo municipal é limitado, quase nenhum, o valor que as federações partidárias podem conservar.
Brotaram elas, ao embalo do sopro da regulamentação da 14.208, com a missão de esconder a cobrança do desempenho mínimo dos partidos nanicos. Pois, na hora de disputar o agasalho do poder, nem essa deficiência foi possível camuflar.
O que pode ficar de positivo e útil na experiência, antes que elas se extingam, é a razão única: recomendar a fusão de pequenas siglas, se entre si conseguem guardar alguma identidade. Porque, comprovadamente, não aguentam a caminhada nos próximos dois anos.
Palavras fora de hora
Mais que natural. Em todo começo de governo as figuras de maior expressão e poder decisório deixam-se inflamar nos excessos do entusiasmo. O que explica (não propriamente justifica) alguns casos de precipitação, pressa nas promessas e palavrórios inconvenientes. A primeira semana do governo Lula viveu essa situação, sem que faltassem episódios para lembrar a Torre de Babel dos tempos bíblicos: muita fala desencontrada e conflitos de ideias nos pronunciamentos dos colaboradores de primeira linha.
Tornou-se preciso que o presidente promovesse reunião de ajustes e acomodações, depois de sentir que, sob o calor da festa, foi empurrado a temer que sua gestão pudesse caminhar para algo semelhante ao carregamento de abóboras: precisou balançar a carroça para que elas cheguem ao lugar, e possam, tranquilas, ir ao destino sem maiores confusões. Não propriamente para censurar o que falam os ministros, mas pedir prudência verbal, adoçando o recado com a exaltação dos companheiros, sob a promessa de não serem abandonados. Mas nem por isso isentos de deveres do alinhamento.
Na administração de um heterogêneo time, onde começaram a jogar 37 ministros, procedentes de diferentes origens partidárias, o primeiro cuidado que se deve cobrar é o uso das palavras, porque, quando vão ao vento, fica difícil consertar os estragos que possam causar. As coisas que se diz ou deixam de ser ditas é que definem a seriedade que o governo pretende revelar.
Tirante a desculpa dos ímpetos de quem está subindo, é preciso que os ministros se contenham, tomando por consciência que a campanha eleitoral acabou, o palanque já foi desmontado. Em suma, saibam separar, de um lado, as coisas que desejam; de outro lado, aquelas que permitem suas forças e conhecimentos. Quando essas diferenças se confundem o governo se sufoca nos delírios, tal como o que acaba de mostrar o animado ministro Lupi, ao apregoar que temos uma Previdência sem maiores dificuldades orçamentárias, em total desacordo com a realidade. O sistema previdenciário brasileiro, que, diferentemente de outros países, não conta para ampará-lo com a muleta dos planos privados, tem sido um espetáculo de rombos acumulados e camuflados. Ainda assim, o ministro avança otimista, para anunciar reforma estrutural no setor, o que colegas mais prudentes já desautorizaram.
Velho problema esse do verbo fora de hora e dos contextos. No passado recente, criticava-se o pouco apreço que o presidente Bolsonaro dava às palavras, descuido que ele mesmo fez questão de confessar, desculpando-se. Pois alguns dos novos ministros entraram descuidados na primeira semana, incidindo nos mesmos tropeços. Não seria a primeira vez que um governo, quanto mais preocupado em diferenciar-se do antecessor, mais com ele se parece. Nem que seja mais por palavras do que por obras.
Sobre a desinformação
A opinião pública teve, como compromisso explícito do presidente da República, a garantia de que o Congresso Nacional será, no quadriênio que começa, amplamente respeitado, nunca tratado como poder secundário. Bom que assim seja, porque um primeiro teste já não tardará. O Legislativo é instado a se manifestar sobre a proposta de criação da Procuradoria de Defesa da Democracia, hora em que deputados e senadores não terão como ignorar preocupações quanto ao risco de sermos arrastados, com a pretendida inovação, para restrições no campo do direito consagrado de liberdade do livre pensar e expressar.
Portanto, não foi preciso esperar muito, e o Parlamento é convocado a avaliar essa intenção do governo, que entra em seus primeiros dias alegando a necessidade de dar combate à desinformação. Para supor, acredita-se, que com tal iniciativa possam vir coisas desagradáveis.
Por princípio, é necessário definir o que é desinformação. Como admiti-la, sob a ótica das conveniências políticas do governo? Não se pode negar que, com vaga interpretação, fica muito fácil conferir a qualquer ministro, em particular ao presidente da República, suficiente pretexto para contrariar opiniões que sejam de seu desagrado, bastando alegar “fatos supostamente descontextualizados”. Eis um campo fértil para eufemismos.
Concomitante aos deveres do Congresso, cabe aos juristas, se não mesmo à Ordem dos Advogados do Brasil, uma profunda reflexão sobre as reais intenções nesse particular. Diante deles põe-se o desafio de explicar que ordenamento jurídico seria capaz de acolher essa proposta; e se, por fim admitida a aventura de aceitá-la, quais os limites para impedir que o governo avance sobre a liberdade de expressão e opinião. Um temor justificável, porque em defesa dos interesses imediatos de sua imagem, o Executivo pode, facilmente, confundir erros de interpretação com eventuais conteúdos mentirosos, abrindo-se fácil acesso à censura despistada, em favor de descontentes com críticas e opiniões contrárias.
A pretendida Procuradoria preocupa-se com a onda fake news, que é mesmo um problema a enfrentar, considerados os prejuízos que tem causado. Mas, para tanto, o remédio adequado é defender a população com a verdade dos fatos, sem a perigosa cirurgia da limitação do direito elementar da livre manifestação, mesmo quando equivocada ou maldosa.
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