terça-feira, 28 de junho de 2022


Tempo para os extremos


(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))



Vale insistir no tema, porque os ânimos na política e entre os políticos, cada vez mais acirrados, ajudam a perturbar alguma esperança de termos eleição presidencial sem maiores temores e incidentes. Já se tem falado muito sobre isso, mas as preocupações vão se tornando maiores, porque o pobre eleitorado parece caminhar para ver-se momentaneamente esmagado na luta entre esquerda e direita. O que já seria ruim, além de um mal adicional: não se sente aí uma campanha de divergências ideológicas, mas apenas o embate entre duas lideranças; essas mesmas que vêm sendo indicadas como preferenciais nas pesquisas. Bolsonaro ou Lula. Eis a questão que se revela.

Se as idiossincrasias desabam em Bolsonaro o remédio é optar por Lula. Se, num viés contrário, as antipatias se dirigem contra o petista, opta-se pelo presidente, seu adversário. É um cenário modesto, ameaçador, inspirado apenas na polarização e na medição de forças e nos antagonismos entre duas pessoas. Certamente que mereceríamos muito mais.

No Brasil de hoje os dois candidatos têm personificado ondas favoráveis ou contrárias, eximindo-os de expor e defender propostas objetivas para o país ansioso. Escasseiam os planos de governo, quando ambos limitam-se à troca de críticas. E, se assim chegarmos a outubro, fecharemos a campanha com premissas de agravamento dos problemas nacionais, que passaram em branco, longe de projetos e de compromissos sérios. A permanecer, sendo presidente um dos dois, herdaremos tensões que escapam de solução nos limites dos discursos de esquerda e direita, que aqui, como em qualquer lugar do mundo, têm sido incapazes de conter crises mais graves; e por isso mesmo sempre acessíveis a incursões ditatoriais, “fora das quatro linhas constitucionais”, como se costuma dizer. Por isso, esquerda e direita igualam-se ambas no ódio à democracia, garantia Norberto Bobbio.

Chegando ao poder, revelam limitada capacidade para conter excessos. E é sabido que não se governa quando a paz está submetida a arroubos; muito menos com sentimentos instalados nos extremos. Daí concluir-se que podem ser pouco suaves os meses que nos aguardam na esquina dos conflitos.

Em situações como a que vivemos, a polarização ajuda a esquentar as palavras e esfriar o raciocínio; fecham-se as portas da razão. Foi o que levou Ortega y Gasset a afirmar que ser de direita ou esquerda resulta em hemiplegia mental. Por extensão, submeter-se à dicotomia de ser contra ou a favor de um candidato ou de alguma coisa é garantia de um passo equivocado.

Pode parecer insistência fantasiosa, mas é preciso reclamar um projeto para o Brasil; uma proposta capaz de identificar vocações nacionais, principalmente, prioridades que possam arrancar do país os bolsões de miséria, que contrastam com os centros urbanos. Nada de novo quando se diz isso, mas vale a insistência, nem que seja pela realidade que está gritando diante de nós; realidade que nunca se reverterá, muito menos com discursos estéreis, requentados em antipatias mútuas.

Discurso inadequado

Uma curiosidade que qualquer observador político tem dificuldade para assimilar está no fato de os dois principais candidatos à Presidência da República adotarem discursos que entram em choque com o cuidado que sempre se entendeu como adequado para quem disputa votos em eleição majoritária. De fato, pelo que se lê e se ouve, Lula e Bolsonaro dizem coisas que, bem pensadas, aprofundam temores, além de não ajudarem na conquista da simpatia de quem conscientemente é convidado a apoiá-los.

O presidente tem afirmado que não sabe o que veio fazer no cenário político. Julga-se perpétuo vocacionado para a carreira militar, saudoso da caserna nos tempos de capitão. Assume atitudes de uma fé religiosa que, antes de ser tolerante e condescendente, tem concorrido para dividir e separar. E, talvez mais grave, dá trelas aos que o veem armado com a ideia de um golpe. Nesse particular, não procura esvaziar as suspeitas de avanços antidemocráticos.

Concorrente na primeira linha, Lula também esbanja potencial polêmico, incursionando em questões que, de tão delicadas, tornam-se inoportunas e indesejáveis em um palanque eleitoral. Afirma pretender uma imprensa policiada, mais imposto sobre quem ganha muito e quer empurrar os militares para os quartéis, recado, talvez, para a oficialidade que no governo Bolsonaro avançou sobre cargos e funções originalmente de provimento civil. Nos disparos altamente polêmicos o candidato do PT promete derrubar a reforma trabalhista. Não teme aprofundar o namoro com os avanços socialistas no continente, mas quer igual experiência para o Brasil.

Perguntar não ofende: no fundo, no íntimo, despertados por expectativas sombrias que engravidam o futuro, esses dois realmente gostariam de estar no lugar para onde desejam chegar? Há quem levante essa dúvida, supondo que lhes bastaria inspirar e ver instalada uma poderosa bancada no Congresso.

Fato é que há coincidências no comportamento que adotam, para confirmar que em política, como em certos fenômenos da natureza, os extremos se tocam por força das correntes alternadas. Se não tanto, ambos concorrem para enriquecer singularidades da política brasileira, porque, mesmo digladiando para a plateia, apreciam dizer coisas que não convêm aos cuidados de uma disputa por si só repleta de perigos.

Volta à ineficiência

Toda vez que o Congresso Nacional quer tirar proveito político de um fato grave e de repercussão, sabendo que não tem como solucioná-lo, cria e encena uma Comissão Parlamentar de Inquérito, tal como se deu com a CPI da Covid, e agora tenta reeditar fracassos anteriores, com a promessa de apurar o que vai no submundo dos combustíveis e nos escorregões do ex-ministro Mílton Ribeiro, acusado de corrupção e traficar influência religiosa. Essas comissões, além de tradicionalmente improdutivas, costumam ser generosas, financiando viagens agradáveis, jantares e dividendos auferidos com os suspeitos que elas conseguem poupar.

Qualquer deputado ou senador estima ser eleito para integrá-las: trinta dias, prorrogáveis por mais trinta, para apurar o que não conseguem apurar. Depois elaboram longos relatórios que ninguém lê. Portanto, se depender de CPI, o ex-ministro da Educação terá o lombo preservado. 

terça-feira, 21 de junho de 2022


Difícil sobrevivência

(( Wilson Cid, hoje, no  "Jornal do Brasil" ))



Não foi preciso esperar muito, nem conjecturar ameaças, para sentir que as recém-criadas federações partidárias estão fadadas a enfrentar desafios de sobrevivência, antes mesmo das previsões pessimistas, que não são poucas. Os sinais estão presentes, e raros os que apostam na sobrevida; muito menos nos quatro anos obrigatórios que a legislação concede aos aliados emergenciais. A razão da descrença começou nos embates verificados em naufragados projetos para a criação da terceira via na disputa presidencial, inviável, entre os principais fatores, pela preponderância dos interesses políticos estaduais raramente coabitados.

Quando se processam as campanhas eleitorais, os partidos, já insólitos por origem e natureza, ganham contornos de agremiações regionais. E nisso hospeda-se a principal razão do pessimismo sobre o futuro dessas federações. É sabido que, dentro de dois anos, quando as forças políticas se posicionarem para a eleição municipal, as disputas do poder e as expectativas passam a ser norteadas pelos valores locais. E os próceres que mandam ali não titubearão em mandar às favas as federações, criadas para salvar partidos raquíticos ou ganhar espaços entre os principais candidatos à sucessão de Bolsonaro.

Mas não faltam previsões em contrário, mais otimistas, sob a alegação de que os partidos federados aproximaram-se por coincidências ideológicas. Mas também aqui as esperanças são frágeis, pois o projeto que vem a seguir é eleger prefeitos e vereadores. Quanto menores e mais fechados forem os municípios do interior, mais influentes imperam fatores localizados, os compadrios e as relações interfamiliares, como também não deixam de pesar velhas rixas políticas que resistem ao tempo.

Quando se fala no poder dos interesses municipais, torna-se sensivelmente limitada a influência das lideranças nacionais; fica demostrado que, nos rincões, uma parte da vida política permanece atrelada ao modelo dos partidos republicanos da primeira metade do século 20, época em que cada estado tinha sua autonomia e formas próprias para administrar votos. Os tempos mudaram muito, mas não em tudo.

Não falta quem aposte que a próxima legislatura, de olho no embate eleitoral seguinte, já estará cuidando de abrir cova rasa para sepultar as federações partidárias.

Memórias do sindicalista

Velho e icônico comandante da extinta e poderosa CNTI - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, Clodesmidt Riani, que em outubro completa 102 anos, tem o primeiro capítulo de sua biografia lançado amanhã, na Câmara Municipal de Juiz de Fora, cidade onde sempre residiu. “As Botinas Tentaram Calar”, com 360 páginas, é obra do jornalista Aníbal Pinto, que considera o livro, antes de tudo, fruto da memória de quem viveu um modelo de sindicalismo que desapareceu e “ficou num passado em que era capaz de parar o Brasil”, com poder de mobilização nunca visto, fenômeno contemporâneo do governo João Goulart. Para o biógrafo, a diferença na história de dois tempos do sindicalismo brasileiro está bem retratada no livro, com base na experiência pessoal de quem viveu e influiu nos acontecimentos.

Outra contribuição, diz ele, é que o livro aprofunda conhecimentos sobre a intimidade que mantinha muito próximos, na década de 60, o presidente da República e esse sindicalista, operário da Companhia Mineira de Eletricidade. Riani estava entre os que mais influenciavam no governo durante a campanha pelas reformas de base, que foram, a um só tempo, alento e queda de Goulart. “Nessa época, revelou-se obstinado defensor do sindicalismo como caminho referencial e único para a justiça social”, explica Aníbal, que prevê para fins de agosto o lançamento do segundo volume da biografia.

No prefácio do primeiro volume, Maria Teresa, viúva de João Goulart, exalta o esforço do livro para impedir que fiquem condenados ao esquecimento fatos de uma das quadras mais importantes da vida nacional. Uma contribuição para resgatar parte recente do passado da República.

Riani teve uma particularidade entre os que mais influíram no governo trabalhista que o golpe militar derrubaria nas primeiras horas de abril de 64. Foi o único que, voluntariamente, apresentou-se para ser preso, cena que é retratada na capa do livro. Condenado pela Justiça Militar, defendido por Sobral Pinto, a pena inicial de 17 anos acabou reduzida a sete. Um fato singular, no diário do cárcere, ocorreu em 69, sob o clima da ascensão da Junta Militar na morte de Costa e Silva. No jogo Brasil x Paraguai, que definiria a seleção na copa de 70, ao ser transferido do presídio da Frei Caneca para Ilha Grande, a escolta e o preso combinaram de, antes, ir ao Maracanã…

Nuvens pesadas

A 100 dias da eleição que vai definir o destino da Presidência da República seria mero exercício de imaginação estabelecer previsões sobre o clima em que terminará a campanha. Para justificar as incertezas, nas quais contribuem também conflitos das pesquisas, bastaria lembrar que no processo estará comandando o Tribunal Superior Eleitoral o ministro Alexandre Morais, desafeto de Bolsonaro, um dos candidatos consagrado num ambiente de tensa polarização.

Na sucessão de desavenças, além dos dois, o Ministério da Defesa sopra brasas já aquecidas, para alimentar a suspeita de insuficiência de garantias na invulnerabilidade das urnas, sujeitas a fraudes, como Bolsonaro insiste em denunciar.

Dispensável enumerar prejuízos decorrentes do clima de hostilidades, começando pelo espírito de intranquilidade que certamente haverá de influenciar muitos eleitores a caminho das urnas (ou deixarão de ir), porque não se sentirão suficientemente seguros na hora de fazer a escolha. É o que poderia contribuir para acentuar a massa dos votos anulados, retrato da descrença nos homens responsáveis por traçar os rumos do país.

Cabe ainda indagar, diante da paisagem de dúvidas e conflitos, o que estará pensando essa rapaziada de 16 a 18 anos?, que vem chegando para votar pela primeira vez. Atores de uma estreia sombria.

Esquerda x direita

O mapa da América do Sul amanheceu mais à esquerda, com a vitória de Gustavo Petro na Colômbia, numa eleição de discutível legitimidade, porque o vencedor teve pouco mais de 3,5% a seu favor, num universo eleitoral em que abstiveram-se 16 milhões de cidadãos. Crise política inevitável no futuro não distante. Mas o que nós temos a ver com isso?

O continente já havia tombado para a esquerda na Venezuela, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. Apertado por todos os lados, o Brasil pode acabar caminhando para ter a próxima eleição presidencial igualmente transformada num embate entre esquerda e direita. O que, na realidade, é fato consubstancial na polarização entre Bolsonaro e Lula. Acossadoque estamos pela vizinhança e, principalmente, pela pressão de interesses externos já claramente manifestados, não só no campo político e ideológico, mas também econômico, é razoável admitir que o desempenho eleitoral da Colômbia vai ampliar, consideravelmente, as atenções dos Estados Unidos e da Europa pelo que está para aconteceu aqui em outubro.

terça-feira, 14 de junho de 2022


Deus nos livre !


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 



Entre os nossos temores - quantos serão hoje? - figura possível sinistro desdobramento da campanha que o governo vem promovendo junto aos supermercados, para que contenham os preços e limitem os lucros. O apelo é elogiável e oportuno, num momento em que a carestia avança; mas é preciso evitar que as boas intenções acabem desaguando nos interesses eleitoreiros e no indesejável tabelamento de preços. Deste Deus há de nos livrar. É experiência de triste memória do ano de 1986, quando surgiram os “fiscais do Sarney”, patriotas querendo fazer o bem, sem saber o mal que o governo e eles produziram.

Toda vez que se recorre ao tabelamento dos preços de gêneros minimamente necessários as consequências dolorosas são imediatas. Os produtos somem das prateleiras, impõem-se os ágios do oportunismo, que só os ricos podem absorver. O tabelamento imposto sempre foi cruel contra os pobres. É não é por falta de verificação e memória. No tempo dos “fiscais”, que denunciavam abusos, comerciantes eram presos e lojas fechadas, o que se via, com frequência, era o estímulo ao câmbio negro, inacessível ao bolso dos assalariados. Veio uma campanha feroz contra os pecuaristas, por causa da carne que sumiu dos açougues. Decretou-se a caça aos bois no pasto, uma espécie de santa cruzada, patrocinada pelos demônios da demagogia. Mas os bois já estavam bem escondidos, na engorda, esperando melhores preços.

Os efeitos da carestia, como a que se observa hoje, são corrigidos na própria engrenagem da economia e no comportamento do consumidor. Para tanto, bastam os excessos de produtos degradáveis, controle dos hábitos alimentares e a contenção da inflação. Fora disso, fracassam todos os remédios, incluída a violência contra produtores e distribuidores.

Esse assunto, que, como se disse, não é de hoje, já na década de 80 rendia aulas de um curso de introdução aos efeitos mercadológicos das crises, com o professor Wilson Beraldo, no Instituto Santo Tomás. Lembrava ele que conter preços com base em decreto já obtivera imenso fracasso na Roma Antiga. Os Éditos de Deocleciano adotaram o tabelamento, desapareceram sal, trigo e óleo, que eram essenciais. Mais recentemente, um ensaio do ministro Roberto Campos enumerou outros insucessos que a História guardou, como sábia advertência aos nossos dias e ao governo Bolsonaro.

Mudos e ausentes

Percebe-se, com facilidade, que a intenção de Lula e Bolsonaro em não participar de debates, no final da campanha – mais uma coincidência a conciliar seus interesses comuns - é evitar que forneçam munições aos contrários e eventuais armadilhas. Outra justificativa, que também aproxima os dois, é que ambos, aconselhados por assessores, passaram a confiar mais na potencialidade das redes sociais. Por que? Porque elas já puderam confirmar seu notável avanço, além de poderem divulgar, quando mal usadas, uma infinidade de boatos que confundem o eleitorado; e esse é um expediente velhaco que pode ser útil em determinadas circunstâncias.

Certamente essa ausência conspira contra os interesses das emissoras de TV, que ficam sem o confronto dos astros principais da campanha eleitoral. Provavelmente encontrarão uma forma de se vingar, retaliando.

Seja como for, se de fato ocorrer a dupla desistência, há dois pontos a considerar, e para eles as emissoras promotoras deviam direcionar suas atenções desde já. A primeira questão é que a ausência de dois privilegiados não importa na exclusão dos demais que concorrem ao mesmo cargo. Façam-se debates entre os demais candidatos, pelo menos entre os que avançarem acima de meia dúzia de pontos nas pesquisas. Porque são igualmente concorrentes, e têm o que dizer a uma sociedade que desejam liderar. Que ideias, que projetos trazem para a campanha? Como pretenderão situar-se no quadro político nacional, caso sejam realmente recusados pelas urnas?

Outro ponto - neste caso estando ou não ausentes os dois candidatos que polarizam - é a necessidade de revisão do formato tradicional dos debates. Primeiramente, é preciso encontrar forma de os candidatos não continuarem sendo escravos dos segundos do cronômetro, que, excessivamente controlados, rompem os raciocínios de quem está expondo determinada ideia, o que, antes de desrespeitar quem fala, desrespeita o telespectador. Mais um desvio a ser corrigido é o direcionamento de perguntas maliciosas, que não querem esclarecer determinada questão, mas agredir o adversário ou simplesmente facilitar o desempenho de um futuro aliado. Quando convém, as perguntas são bolas fáceis levantadas entre amigos no vôlei generoso. Se adversário, os saques são ciladas e constrangimentos.

Mas, no balanço geral, mesmo com senões, os debates televisivos têm utilidade. Não devem desaparecer.

A corda já puída

O projeto eleitoral que se desenvolve em Brasília, para tentar o segundo mandato do presidente Bolsonaro, parece estar dividido em etapas estratégicas. Sobre elas pouco se sabe, mas é inegável que, no presente momento, a prioridade da primeira fase é consolidar o Supremo Tribunal Federal no campo das disputas políticas, e vê-lo desgastado diante da opinião pública. Numa avaliação imediata isso parece somar pontos, até porque os demais candidatos não se sentem à vontade para defender togados. Os condutores dessa pré-campanha também devem se sentir estimulados, pelo fato de em nenhum outro tempo a mais alta corte de Justiça andou tão desprestigiada. Claro, então, que o Executivo quer o STF no cenário eleitoral bombardeado toda vez que incursionar em questões políticas, o que tem feito com frequência.

Não é de agora que têm prosperado as tensões entre os dois poderes. Visível a ruptura, sem que se possa dizer que as maiores culpas devam ser debitadas a um dos dois lados; porque os golpes de espadachim procedem de vários gabinetes da pequena esplanada que os separa.

A imagem frequente que se elabora para definir esse perigoso conflito é a corda cada vez mais esticada. O presidente e os ministros cuidam de esticá-la sempre que surge uma divergência; e não há quem se disponha a amenizar os efeitos dessa tensão. O presidente Bolsonaro deu o tom maior, na semana passada, ao anunciar que não se sente na obrigação de acatar decisões do Supremo, que, pouco antes, havia confirmado punição imposta a um parlamentar governista acusado de divulgar fake news. Pronto. À mão, novo ingrediente para temer o rompimento da corda já puída.

Estamos diante de uma guerra travada entre Executivo e Judiciário, que, chegando ao ponto a que chegou, torna escassos e manchados os poucos lenços brancos da paz. Nada menos desejável no quadrimestre que antecede a eleição, e com carradas razões para um impasse doloroso.

Desordem e retrocesso

Hoje, a impressão dominante é que o Brasil vive um jogo de cartas embaralhadas, sem que se saiba exatamente quem é o crupier que administra a roleta, onde apostadores falam sério ou estão blefando com falsos trunfos nas mangas. Seja como for, o país está diante de dúvidas e ansiedades, sem que faltem certos lances prosaicos. O brasileiro amanhece não sabendo se os fatos e as pessoas continuam nos lugares em que estavam na noite anterior.

Completa confusão, que autoriza pedir licença à memória dos positivistas, e reescrever a legenda da bandeira. Não mais ordem e progresso, mas desordem e retrocesso:

1) O Supremo, descendo ao papel de delegacia de polícia, exigindo prioridade do governo para localizar indigenista e jornalista perdidos no mundo amazônico.

2 ) O ministro Fachin quer que a polícia explique como enfrentar, condescendentemente, traficantes entrincheirados nas favelas.

3) O próprio é convidado a embarcar num tanque de guerra, para não desconfiar mais das operações policiais.

4 ) Secretários de Segurança dos Estados mandam para o lixo a interferência do Superior Tribunal de Justiça nas abordagens policiais preventivas, relegando o “racismo estrutural”.

5) Situação inédita: Ministério da Defesa e TSE em conflito aberto sobre limites de competência na avaliação da vulnerabilidade das urnas eleitorais.

6) No Congresso nada preocupa e motiva mais que as incursões nos Fundos que vão financiar as campanhas.

7) Bolsonaro, de olho no Supremo, onde vê canalhas, chama os desafetos para resolver no braço as divergências.

O que falta acontecer mais?


terça-feira, 7 de junho de 2022


Política violenta

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))



Não faltaram vozes assustadas, protestando, quando a Polícia Federal anunciou plano especial de proteção aos candidatos à Presidência da República, e nesse propósito pretendendo investir R$ 57 milhões. O que pode ser objeto de discordância é o fato de estarem destinados 30 agentes para cada um deles, nos 45 dias da campanha, o que pode parecer exagero; ou o volume de gastos previsto. Contudo, é impossível discordar da necessidade de os postulantes ao mais alto cargo da República estarem cercados de agentes especializados em segurança, porque no calor da campanha, no entrechoque dos interesses políticos, na intolerância sempre haverá alguém disposto a uma iniciativa terrorista. E os atentados políticos costumam levar a imensas complicações.

Fato mais recente na crônica dos atentados foi em 2018, quando o então candidato Jair Bolsonaro sofreu uma facada, que por pouco não lhe custou a vida, embora, na contrapartida, gerasse um clima de comoção que auxiliou seu desempenho nas urnas.

O esquema anunciado pela Polícia Federal, na semana passada, tem antecedentes que o recomendam. Quem primeiramente se arriscou, em 1897, foi Prudente de Morais, quando um antigo militante de Canudos, Marcelino Bispo de Melo, tentou matá-lo, e só não conseguiu porque o ministro da Guerra, Machado Guimarães, colocou-se na frente, e morreu no lugar do presidente.

Em abril de 1933 uma pedra rolou sobre a Rio-Petrópolis e atingiu o carro de Getúlio Vargas, morrendo seu ajudante de ordens. Todos os sinais eram de um atentado, que o governo procurou relegar, admitindo mero acidente, para evitar crise e tumultos.

Não somos um país de poucas pazes, quando se trata de guerras políticas. É sabido que em junho de 1968 havia sido destacado um capitão, para, depois de explodir o gasoduto do Rio, cuidar de atirar ao mar cerca de 40 políticos indesejados pela ditadura, entre eles Carlos Lacerda. O plano acabou abortado, pelo excesso de audácia. Neste JB, janeiro de 1977, entrevistado o general Lopes Bragança, disse ele que em 64, na festa de Tiradentes, em Belo Horizonte, seria metralhado ou explodido o palanque do presidente João Goulart. Se falhasse, um perito em tiro de longo alcance cuidaria de alvejá-lo. O golpe se antecipou para encurtar o mandato, sem precisar matá-lo.

São, portanto, inúmeros os casos suficientes para excluir o Brasil da crença de que vivemos uma política de bons modos. Bolsonaro que o diga, para não se remexer mais em coisas do passado.

(Agora, o que se ficou sabendo do esquema de segurança dos candidatos, é que gente do PT recusa a proteção de seu candidato preliminarmente confiada a um policial suspeito de ser confesso bolsonarista. O partido acha que aceitá-lo seria o mesmo que confiar a Herodes a segurança de um berçário…)

Ainda fake news


Não tem sido fácil tarefa policiar e constranger os que fazem uso inadequado de fake news, porque, muitas vezes, o usuário lança mão de recursos eletrônicos que não estão ao alcance da Justiça. E, ainda agora, quando o futuro presidente do TSE, Alexandre Morais, ameaça cassar o registro de candidatos que infringirem dispositivos que regulam a matéria, indaga-se como poderia ele cumprir o que promete. Observe-se que o candidato que oferecer algo impossível aos seus eleitores, abusando de artifícios e desinformando, estará praticando fake news. A questão é como provar as mentiras, comuns na caça aos votos durante as campanhas. Von Birmark já dizia que nunca se mente tanto como nas campanhas eleitorais, durante as guerras e depois da pescaria... As campanhas são sorvedouros de falsas promessas, versão eleitoral das fake news, inofensivas ou não. É o suficiente para concluir que, antes de atacar o criminoso, a única forma de contê-lo é na fonte, porque depois que o ilícito for ao vento, não há como impedir os estragos.

O recurso menos ineficiente para o Tribunal é um tratamento rigoroso com as plataformas, que podem conter alguma coisa dos ímpetos de falsidades e desinformações. Mesmo assim, sem poder descuidar do primado da liberdade de manifestação.

O ministro Alexandre de Morais, que terá o TSE sob sua presidência em coincidência com o calendário das eleições, fala em suspender, entre outras penalidades, o direito de candidatos que abusarem, mas deve sentir que apurar infrações desse tipo também demanda tempo; e o remédio legal para corrigir o que tiver de ser corrigido, em julgamentos vários, nem sempre terá pareceres em tempo hábil antes de 2 de outubro. Acresce que, no caso de o infrator eleger-se, será delicado romper com a manifestação popular. As coisas não são simples.

A mentira, quando prospera em tempo de eleições, ganha a rapidez de um corcel, difícil impedi-la. Para prová-lo, o mais célebre caso de fake news no Brasil vem da década de 50, quando Hugo Borghi, amigo de Getúlio Vargas, propagou que o candidato oposicionista, brigadeiro Eduardo Gomes, dissera que dispensava o voto de operários, os “marmiteiros”; o que ele jamais havia dito. Mas já não dava tempo para desfazer o mal inventado.

Amados rejeitados


Pois ainda não foi possível uma conclusão aceitável sobre o real poder de influência do volume das rejeições na disputa presidencial deste ano. Ou, até que ponto o peso do fator da indesejabilidade poderia decretar a vitória de um dos candidatos que lideram as pesquisas, onde os favoritos também são os mais indesejados. Vá alguém tentar entender isso... Na verdade, o assunto nem tem conseguido abrigo na pauta do processo eleitoral; assunto secundário, embora valesse especular o intrigante fenômeno esse em que os que recebem a promessa de melhores votações serem exatamente os que ostentam maiores índices de rejeição.

Estaria a maioria do eleitorado condenada, por suas próprias mãos e votos, a fazer opção pelo que lhe parecer menos ruim? É preciso reconhecer que isso seria muito pouco para quem é chamado a definir o futuro imediato do país, que se contorce nas cólicas de uma infinidade de desafios.

É preciso avaliar melhor as origens e os desdobramentos dessa realidade que vivemos nos quatro meses que separam a nação de um pleito que todos têm na conta dos mais importantes da nossa História. Como explicar esse quadro surreal?, em meio a um campeonato em que preferências vão desaguar nos enjeitados; de tal maneira que o próprio eleitorado, consultado nas incontáveis pesquisas, revela clara tendência de inviabilizar candidaturas alternativas.

Para se concluir que, também na política, o Brasil não é para principiantes.

Para se comemorar

Diante de um cenário em que não faltam razões para preocupar, mas sabido que nem tudo está perdido, vale lembrar que no Brasil algo é digno de ser comemorado. Hoje é o Dia da Liberdade da Imprensa, esse bem inarredável do regime democrático, que, diferentemente, em outras partes do mundo vive momentos críticos. Para quem, aqui mesmo, viveu fases de liberdades afogadas, é preciso lembrar que nunca antes o direito de opinar e criticar, pela via da imprensa, foi exercido tão plenamente. Veja-se o que temos podido dizer sobre os governantes, em particular quanto ao presidente da República. E membros do Supremo Tribunal Federal. Com os ministros de tal maneira achincalhados, chegou-se ao ponto de seu presidente ser desconvidado para a palestra que iria proferir no Rio Grande, diante de tamanha reação contrária da sociedade local. Resultado, com toda certeza, do desprestígio que a imprensa, não injustamente, construiu para aquela corte.

Sobre o presidente Bolsonaro, é certo que nenhum dos antecessores foi bombardeado com tamanha intensidade. O Congresso, nunca festejado, goza da vantagem de poder diluir as críticas entre os mais de 500 de seus integrantes, mas nem por isso passa incólume. Sendo livre, a imprensa já pôde mostrar à sociedade que esse Legislativo fica longe do ideal.

De tão livre, não faltam vozes a reclamar mordaças. Aliás, essa é uma ofensa que figura entre as propostas da campanha eleitoral que vai começando. Sendo assim, é desejável o eleitor não perder de vista que a morte da liberdade da imprensa sempre esteve no amanhecer de qualquer ditadura. Ocorrem casos de ofensas, na cadeia perversa de alguns setores do jornalismo, gerando injustiças. Mas contra o abuso há remédios que podem ser aplicados, sem agredir ou ferir de morte a liberdade.