terça-feira, 30 de março de 2021

 


Ideais que se perderam


(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil”)


A um exercício encomendado por certo professor de Organização Política, jovens alunos do interior de São Paulo foram pródigos em apresentar críticas e sugestões sobre como melhorar e salvar o Brasil, mas sem que se lembrassem de uma questão que parece pertinente à matéria. Trata-se dos ideais básicos da nacionalidade, perdidos no tempo, mas que cabe resgatar, começando por um objetivo que por ele é preciso lutar com bravura: a solene introdução da seriedade no trato da coisa pública, algo de que o Brasil da atualidade se vê empobrecido. Porque sem esse aditivo básico à ordem geral, dificilmente teremos como garantir e antecipar esse futuro melhor, com que gerações passadas já vinham sonhando, mas desanimadas em repetidas frustrações. Temos de instituir a seriedade das coisas e nas relações entre as pessoas. Só assim o país prospera, e seja compensado pelas desventuras por que vem passando. Em poucas palavras, construir um Brasil sinceramente idealista, sério nos poderes e na atuação de seus gestores.


Há coisas que, no oposto, fazem desacorçoar. Na semana passada, se faltasse embasamento a essa preocupação, ocorreu fato raro na organização política das sociedades modernas: o orçamento da União para 2021 foi aprovado no Congresso, quando o ano já estava enterrando o primeiro trimestre. E, mesmo decepado, veio com inovações e propostas parlamentares que, a se tomar o parecer de especialistas, haverá de ser castrado em cerca de R$ 7 bi. Longe de inovar nessa quadra, o novo orçamento público mantém a tradição de estabelecer o conflito entre o que é razoável e o impossível. Já é sabido, trata-se de um jogo de receita e despesa condenado a incontáveis contorcionismos diante das aperturas ministeriais. Em paralelo, o novo orçamento se presta, igualmente, a frustrar insurgentes adeptos da tomada do poder pelos militares, porque, além de ocuparem cadeiras e gabinetes seus e de civis, eles saem contemplados igualmente com especiais atenções na previsão de dotações.



A lei de meios avançou sobre o Congresso, sem que merecesse o ideal de discussões e estudos mais sérios sobre as prioridades que a realidade impõe. Passou sem o empenho de representações da sociedade, estas praticamente ausentes. Na contrapartida, não faltaram atenções para temas pitorescos, como a visita de um assessor presidencial, que surgiu na TV com o gesto de dois dedos juntos, o polegar e o indicador hirtos, na celebração do obsceno. Episódio banal, em que todos perdem, não apenas o assessor descuidado. Algo longe de merecer as atenções que teve.


Pois, nesse arsenal de singularidades, o presidente Bolsonaro, já sob o bombardeio dos adversários, surge visado, igualmente, por setores parlamentares que o apoiam, preocupados com os rumos das relações externas e com o quadro de profunda insegurança da política sanitária. Sem saber como dividir o ônus com os governadores, mal caminhando no caso das vacinas, o Planalto passou a sentir então que o fogaréu que vinha de fora, agora parte também da cozinha. (Vale registrar que, quando disparam pedras de mãos amigas e levantam a voz, os deputados e senadores situacionistas fazem lembrar o mineiro Mílton Campos, para quem falar mal do governo é coisa tão gostosa, que não deve ser privilégio da oposição..)


O fogo amigo pode persistir em algumas circunstâncias, como agora; contudo, ainda longe de assumir caráter de canibalismo, porque esse é um cenário mais adequado às vésperas da eleição. Não agora.


Ora, se o Brasil, carente de puros ideais, não é um país sério, coisa que De Gaulle nunca disse, embora a ele a ofensa sempre seja atribuída, pelo menos reconheçamos que Jobim não se equivocou ao dizer que o Brasil não é, de forma alguma, para principiantes. Não tem como ser compreendido apenas com superficiais incursões. Talvez nem “tão pobre de homens e de ideais”, como sentenciou Oswaldo Aranha, mas num tempo em que o chanceler de Vargas, no seu ideal de revolucionário de 30, não tinha como prever, para o século 21, os protagonistas dos governos, dos parlamentos e dos tribunais. Não acharia que pudesse ir tão longe a indigência que o preocupava.


Acaba que os conceitos de ideal e seriedade vulgarizaram-se, o que, em parte, ficamos devendo à robusta prática da demagogia eleitoral. Palavras esbanjadas em discursos de conteúdo esquálido, banindo o sentido original e deturpando aqueles sentimentos que, acoplados um ao outro, levam à contínua busca da perfeição. É preciso continuar trabalhando para recolocá-los no lugar de onde os homens maus os apearam. É a tarefa dos idealistas sobreviventes. Pois foi sempre o ideal que aperfeiçoou, modernizou, e, em suma, foi capaz de construir todas as civilizações.



terça-feira, 23 de março de 2021

 


Um olhar sobre março


(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil”))


O presidente não teria como ser mais claro. Em meio à efervescência de conflitos e ameaças, ele disse, e repetiu, que, para atingir o essencial do muito que precisa fazer, teria de contar com o apoio direto do povo; que, por sua vez, isso serviria de inspiração e ânimo para as Forças Armadas agirem como lhe convém, sob o clima de estado de sítio. Atrelado à desejada simbiose, isto é, o povo nas ruas e os militares fora dos quartéis, promete que sua caneta bic ganhará a força de um tufão. O presidente já não elabora meios termos para considerar que, sem essa adesão conjugada, estará limitado para assumir certas responsabilidades que possam livrar o país dos impasses multifacetados em que se encontra e neles parece afundar cada vez mais. Bolsonaro deixa entender que não mais confia no diálogo pelas vias institucionais. Lança-se na aventura dos poderes especiais.


Esse recente apelo, pela televisão, chegou em tom ao mesmo tempo convocativo para os militares e convidativo para cidadãos comuns, confiante em que as vozes das ruas e dos quartéis acabariam se identificando para a causa comum. Com breves palavras, disse tudo o que acha que tem a dizer no presente momento, sentindo e confessando a insuficiência de suas forças. Para bons entendedores, que não sejam ouvidos de mercador, a mensagem é bastante em si mesma. O presidente aspira a forças e mobilização suprainstitucionais para governar, começando por conter ímpetos do Supremo Tribunal Federal e do Congresso. Nos anos 60, Jânio Quadros também sonhou com isso, mas madrugou numa renúncia que custou caro à democracia.


Veja-se, a propósito, a multiplicação dos brados que vão se levantando contra a corte maior. Nesses clamores o presidente gostaria de tomar carona, mesmo que não pretenda, e nem convém, descer ao achincalhe com que têm sido contemplados o Tribunal e seus togados, espinafrados como nunca antes, desde os velhos tempos da Casa de Suplicação. Ninguém ignora que os juízes vivem o momento de seu maior desprestígio, sob um clima adequado para o presidente e seus simpatizantes confrontá-los.


Mas cabe avaliar melhor o fenômeno em que Bolsonaro está se baseando para alinhar, em uma força única e ordenada, civis direitistas e os militares, estes já naturalmente de sua simpatia, considerando-se que guardam a mesma origem caserneira.


Para tanto, é mais que evidente que se revela cada vez mais atuante e mais hostil a militância da direita no Brasil. O país acostumou-se, de há muito, a ver uma esquerda mobilizada, impositiva e reivindicante. Não havia dado conta de que a direita também se organizava, rompia os limites dos gabinetes de políticos e dos líderes empresariais conservadores, pronta para ir às ruas, assumir as redes sociais e lançar propostas da maior gravidade, entre as quais a corajosa campanha para o fechamento do Supremo Tribunal. O presidente não chega a tamanho delírio, mas é de seu inteiro agrado ver Legislativo e Judiciário descalçados de determinados poderes em que, algumas vezes, o governo sente-se acossado pelos parlamentares e ministros que escapam de sua simpatia. A reação popular pretendida vem a calhar para quem pretende vencer certos incômodos na interpretação do texto constitucional.


Os direitistas e suas militâncias se associam a esse sentimento, e se justapõem, sem maior esforço, ao estilo bolsonarista, tanto nas questões de hoje como no projeto da reeleição. E, para confirmar alguma semelhança com a esquerda, também são capazes de atrair grupos jovens. Basta recordar. Esses movimentos começaram a se estender a partir de 2013, de forma difusa, nas jornadas diárias da insatisfação da juventude, começando por S.Paulo, contra o aumento descontrolado nas tarifas do transporte coletivo. A partir daí, as ações passaram a agir com método, obtendo significativos avanços. Claro, nessa onda, estando o governo com um capitão do Exército, que enfrentou e bateu o PT, tornou-se natural a simpatia de camadas das Forças Armadas.


Insinuando o remédio amargo do estado de sítio, ele é, na verdade, incisivo, o suficiente, para despertar os que ainda apostam na ordem institucional como remédio único para o país enfrentar e vencer o tempo de inseguranças em que está vivendo. Porque na sua cadeira, toda vez que alguém reclamou o bafo das ruas, é porque quis buscar efúgio, e dar passos além das medidas que podem. Bolsonaro acredita que sua hora é esta. Até porque avizinha-se um 31 de Março, que ele considera símbolo da salvação nacional.


Os Idos de Março custam a passar. Na velha Roma, 44 a.C, Júlio César não acreditou nisso, e caiu sob o punhal dos conspiradores. Se punhais não faltam, é preciso redobrar cuidados com a saúde das instituições e da democracia.



terça-feira, 9 de março de 2021

 


Reforma sob tensões?


((Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil”)


Da mesma forma como se admite pertinente e necessária uma reforma política estruturalizante, pois sempre foi anseio da vida pública brasileira, há certos detalhes que podem condená-la, a priori, a novos impasses. No caso presente, é preciso considerar que são apenas algumas correntes parlamentares que tentam ressuscitar a matéria, longamente esquecida; e agora retomada, num momento em que outros temas afligem a sociedade; e, se nada mais, o fato de estamos vivendo e perdendo batalha de vida ou morte com a pandemia.


( Nesta hora, a Federação já foi para o espaço; o presidente é refém de si mesmo e da família; os poderes batem cabeça; volta-se à autonomia dos governadores, como na Velha República; o Planalto, na contramão de todos, prefere desdenhar da pandemia; o país, humilhado, sofre a condenação do mundo).


Seria esta a hora para qualquer reforma? Terão a sociedade e seus representantes suficiente tranquilidade para tratar de questão tão complexa? Ou, mesmo que a tivessem, estariam emocionalmente preparados para decidir sobre o que se pretende mudar? É, no mínimo, duvidoso.


Mas, vá lá. A se tomar por base o noticiário, a PEC 376-09 chega farta de propostas, quase todas polêmicas, algumas já fartamente discutidas, nem por isso viabilizadas, mas sempre dividindo opiniões. Tratemos, por hora, de apenas de três entre as mais importantes; dessas que, desde agora, vão dando garantia de nenhum compromisso com a unanimidade.


É o caso de se pretender coincidência no calendário eleitoral, de forma que todas as votações, sejam proporcionais ou majoritárias, se deem num mesmo dia de um mesmo ano. Nessa questão avulta um ponto dos mais controversos. Os que advogam a mesma data argumentam que a Justiça Eleitoral economizaria orçamentos, e o cidadão obrigado a votar uma única vez; como se despesas com eleição figurassem como desperdício, e o exercício da visita à urna fosse grande suplício. Os defensores de eleições periódicas de dois anos certamente têm argumentos mais consistentes.


Detalhe que parece digno de observação, é que nossa educação quanto às representações políticas, muitas vezes interrompida por acidentes institucionais, carece de exercitar-se um pouco mais. Bastante observar o nível dos agentes políticos ungidos, para se ter em conta que muito temos a aprender. Votar, pois, de dois em dois anos, um direito-dever cada vez menos dificultoso, com acesso da população aos meios de informação e aos recursos eletrônicos. É quando se vota com frequência que se conquista a capacidade de apurar o que se está decidindo. Soma-se a isso, considerar que os regimes democráticos não temem eleição, inversamente às ditaduras, que a tratam com aversão.


Outro tema, que veio prosperando à sombra de experiências mal sucedidas, de novo aventado para a pretendida reforma, é o instituto da reeleição, essa liberalidade largamente concedida para carreiras legislativas, mas restrita aos executivos. Mesmo com a ressalva de que não vivemos os melhores momentos para mexer, tão fundo, na organização político-eleitoral, vale considerar, ao menos de passagem, que a reeleição tem deixado a desejar. Demonstram sua passagem por Fernando Henrique, Lula e Dilma, que não lograram atingir, no segundo mandato, o que haviam obtido no primeiro. Para ampliar as razões que mandam presidente, governadores e prefeitos se contentarem com os quatro anos já cumpridos, é suficiente lembrar que a conquista de novo e imediato mandato jamais escapa de composições abusivas e concessões pouco ortodoxas, nada republicanas. Não há quem ouse discordar disso.


Demais, a reeleição não tem parte com a tradição brasileira. Escapou dos militares, mas no passado serviu ao continuísmo de Vargas. Por fim, se, como frequentemente se argumenta, quatro anos inibem os executivos para realizar o que têm em mente e o que prometem ao eleitorado, então que sejam contemplados com cinco anos. Tempo bastante para honrar compromissos, se para tanto forem capazes.


O terceiro ponto da pensada reforma, aleatoriamente escolhido para breve comentário, é de comovente desarrazoado. Trata-se da intenção de estender para dez anos o mandato dos senadores, que atualmente tem a duração de oito. Em que objetivo se assenta essa ideia absurda? O que pode levar o pensamento reformista a presentear a senadoria? Se há uma razão plausível, encontra-se de tal forma escondida, que nem é impossível identificá-la de imediato.


O que se compreende e se aceita na Câmara Alta é que, estando ali os representantes das unidades da Federação, faz bem que sejam três para cada estado, independentemente de expressão política e social. A trina bancada é antiga, vem da Constituição de 1891, e só em 1934 a representação caiu, momentaneamente, para dois senadores, porém mantido o mandato de oito anos, duração, aliás, raríssima na maioria dos países em que funcionam parlamentos.


Se nada justifica esse agente da Federação manter-se na função por oito anos, pior é a tentativa de ampliá-los para dez. Quase um retrocesso ao Império, quando o senador era vitalício; precisava morrer para perder o mandato... Na verdade, o que se deve fazer é desengavetar antigo projeto de Lúcio Alcântara (PSDB-CE), que mandava a permanência do senador no Congresso retroceder aos quatro anos, tal qual o que se concede a todos os ungidos pelo voto popular.


Contudo, longe de esgotarem os prós e contras, esses e outros itens da reforma que se pretende para a política exigem longas e ponderadas discussões, o que a impede de ocupar tempo e vagar neste momento de aguda dificuldade que está vivendo a nação. É importante, mas não agora.





terça-feira, 2 de março de 2021

 



A TRAGÉDIA


Ao chegar a 250 mil mortes, sem que o mal nem permita as derradeiras homenagens de um velórios, o Brasil já tem como eleger a Covid 19 sua maior tragédia em todos os tempos. Nem as guerras, nem as catástrofes foram capazes de produzir tamanho luto; nem as enchentes, nem os incêndios devastadores. A pandemia fica também com o galardão sinistro de destruir vidas mais que todas as que a antecederam.


Quanto a Juiz de Fora, o obituário do vírus decidiu fechar fevereiro levando uma figura querida por todos, Zé Kodak, criador das alegrias dos carnavais, que certamente nunca mais serão os mesmos, sem ele. Na verdade, os dois primeiros meses do ano foram cruéis com a cidade. Já são 15 as personalidades ilustres que não mais estarão aqui.


A escala sinistra da morte leva a algumas reflexões, sem que se dispense a dor que invade famílias, cancela amizades e prejudica negócios. A primeira questão causa estranheza, porque as mortes não têm sido suficientes para recomendar cuidados a milhares de pessoas, que insistem em desafiar o vírus, não se protegem e nem protegem os outros. O revellion já está cobrando caro dos cariocas e paulistas, mas não serve de advertência nas aglomerações do futebol.


Cabe refletir, igualmente, sobre o comportamento adotado pelo presidente da República, que não tem perdido ocasião para desmentir, desautorizar e desqualificar as medidas preventivas recomendadas pelos organismos de defesa sanitária. Ele tem parte na responsabilidade pelos números que estão infelicitando o Brasil.



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FEMINICÍDIO


A alegação de defesa da honra em crimes que envolvam feminicídio é insuficiente e inconstitucional, segundo o ministro Dias Tófoli, do Supremo Tribunal Federal. Na quinta-feira, o Pleno da corte decide se referenda ou não o voto, que se baseou no que o ministro chamou de “argumento retórico e odioso”. A aprovação seria boa iniciativa para abrir o mês dedicado aos direitos da mulher.



JUMENTOS


Projeto do deputado Célio Studart (PE-CE) pretende instituir, no calendário oficial do país o Dia Nacional do Jumento, definido como patrimônio do povo brasileiro, que dele se serve para incontáveis serviços. Não se pode dizer que sejam infundadas as preocupações do deputado cearense, que já definiu o dia 13 de maio para a comemoração. Mas ele corre o risco da chacota, pois de jumentos já andam cheios muitos plenários políticos.



MOROSIDADE


O governo tem pressa na tramitação da PEC da Eletrobras, que o presidente Bolsonaro cuidou de levar, pessoalmente, ao Congresso, mas é pouco provável que obtenha resultado em curto prazo. Para se prever longo atraso, bastaria lembrar que os parlamentares já encaminharam 570 emendas ao texto original.



NEOLOGISMO


Para advertir quem espera que desamine de tudo que diz e pretende fazer, o presidente Bolsonaro garante que é “imbrochável”; quer dizer, não perde o ânimo, mesmo que seja para enfrentar grandes dificuldades.

Nessa incursão ao dicionário, para criar o neologismo, ele faz lembrar um ministro do Trabalho no governo Collor, Antônio Magri, que inventou o “imexível”, para explicar qualquer coisa que não se pudesse remover.



DÚVIDAS


Matéria que entra na linha das pautas principais, a retomada das atividades presenciais nos estabelecimentos de ensino não é decisão fácil de ser tomada, ao contrário do que muitos pensam. Sobrepõe-se, no caso, uma tríplice responsabilidade: da prefeitura, por saber que a pandemia ainda impera; dos colégios, que têm de garantir condições sanitárias mínimas para os alunos; e a responsabilidade dos pais, que expõem os filhos a um risco que ninguém pode negar.



 


Só nos resta uma saída


(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil” ))



O final de fevereiro deu assuntos suficientes para pensar e temer ainda mais pelo futuro do país, sob os auspícios desse presidencialismo que periclita, já sem força e prestígio para se conduzir e cumprir tarefas. É o filho primogênito da república, que nasceu em 1889, sob o calor da surpresa e do espanto, na cara de um povo bestificado, sem saber o que estava acontecendo. O alagoano Deodoro, febril, gripado e hemorroidário, acabava de levantar a espada contra seu amigo imperador. Pois, nas treze décadas seguintes de sua história, ela e seus chefes pouco mais produziram, que conspirações, revoltas, barbáries entre rivais e – por sobre tudo – incapazes de construir um projeto duradouro de vida e harmonia para a sociedade brasileira.


E o que temos hoje num cenário de acidentes e incertezas? Pouca diferença em relação aos tempos idos, porque agora o brasileiro também assiste, perplexo e tonto, ao desenrolar das coisas, sem saber exatamente em que águas navega o Brasil, e em que crise poderá encalhar de vez.


Se nem tudo se pode imputar à república, ela não escapa do papel de prima-dona nos enredos de dúvidas e abalos que temos vivido. Há que acrescentar a responsabilidade, ainda que não total, de sua contribuição para os impasses político-institucionais, porque o presidencialismo, que dela jamais se desatou, sobrevive de suas velhas tetas, já cansadas, de entranhas desgastas, como a recomendar, se outras razões não houver, que as lideranças nacionais mergulhem, com coragem, na solução parlamentarista. Nossas acumuladas experiências sugerem que é por aí que temos de caminhar, pois não restam alternativas eficazes.


Admitida essa tarefa, que não sejam dispensadas as organizações políticas, embora com o cuidado de não permitir que a pretendida transformação fique somente a elas atrelada e dependente. A razão é simples: as lideranças, a começar pelos homens do Legislativo e do Executivo, não terão, moto próprio, interesse em ceder poderes a um sistema de Gabinete. Na verdade, fundamental é que a opinião pública, sem tolerar distinções e privilégios, conheça, discuta e propague o parlamentarismo, consciente de que já não há mais como salvar o presidencialismo de hoje.


A nação deve saber que é preciso coragem, e muita, para avançar e romper com o velho modelo. Mas qual foi o grande passo que se deu, à sombra de nossa bandeira, que não tenha sido resultado de coragem?


Os contrários, e não são poucos, têm à mão, para contestar, o fracasso da experiência de 1961, que, submetida depois ao voto popular, capitulou sob maioria esmagadora. O exemplo, contudo, é frágil, pode ser rapidamente sufocado, quando se recorre à História, para se saber, com todos os fundamentos, que o presidente João Goulart acatou provisoriamente a emenda inovadora; e já na véspera da promulgação, trabalhava, com afinco, para derrotá-la e retomar a plenitude do presidencialismo. Trabalhou contra um Gabinete híbrido, e desprestigiou seus primeiros-ministros. Outra coisa que influiu para eliminar a consolidação do sistema é que ele antecipava, com tonalidades, o colorido do verde oliva da ditadura.


Não são de agora os desencantos. Já Rui Barbosa, que assistiu o (e ao) presidencialismo, não morreu sem antes confessar que está ali o mal da irresponsabilidade sistemática, observação a que se pode acrescentar, com análise atual, que é capaz de melhor combinar ineficiência e corrupção. Está demonstrada tal associação, visível, não em tempos distantes, mas neste mesmo momento de tragédia da pandemia. A vacina não chega ou vem em conta-gotas; e, quando chega, denuncia a digital de não poucos corruptos aproveitadores. Em casos dessa natureza, o parlamentarismo teria retirado a confiança no governo, novo Gabinete seria formado, o presidente ficaria onde já está, sem necessidade de golpes e quarteladas. Tal é a nitidez disso, que hoje o parlamentarismo rege algumas das melhores democracias do mundo.


Outro abismo, obra que tem a participação presidencialista, com as instituições prestes a despencar, é a flagrante animosidade entre os três Poderes. Era o que nos faltava. Presidência da República, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal já não se entendem; digladiam ao preferir interpretar a Constituição ao sabor de circunstâncias e conveniências. Ao presidente tem faltado equilíbrio e aos deputados menos amor ao corporativismo. E os ministros togados? Se não podem ser agredidos, como tem acontecido com frequência, falta-lhes o toque da humildade, exemplarmente encontradiça em qualquer “ordem monástica”, segundo antiga expressão de Raphael Magalhães. Guardiães da Constituição, nem assim têm conseguido impedir que ela se afrouxe, sob o impacto de interesses.


A nação chegou ao fundo do poço? Há quem conteste, afirmando que até nosso poço se tornou falso. Tem o alçapão da desarmonia dos Poderes, e, com mais algumas incursões, é que se atingirá o caos. O Legislativo não legisla como devia; o Executivo não executa como precisaria; o Judiciário não judica com soberania. Eis o poço suficientemente minado.


A nação brasileira precisa acordar e se armar de cultura parlamentarista; conhecê-la com tal consistência, que forças políticas carcomidas e viciadas não possam reagir. Porque, sempre que se propõe mudar o sistema, armam-se, para resistir, os adeptos desse presidencialismo robusto e mandão, que pode muito, e muitas vezes dá o que não deve. Há uma corrente de pragmáticos, que prospera não é de hoje.


Em 1957, o deputado gaúcho Raul Pilla, pai do parlamentarismo, até conseguiu aprovar a competente emenda que introduzia o Gabinete; não passou disso, porque a maioria logo sentiu que a classe política seria prejudicada. Mas não custa uma nova tentativa para ressuscitar a ideia. Faria muito bem ao Brasil, de hoje e de amanhã.