terça-feira, 26 de maio de 2020


Que reunião!

(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))

Difícil resistir à tentação de acrescentar algo a tudo que já se disse sobre a famosa reunião ministerial de 22 de abril; até porque há certos temas, particularmente na política, que quanto mais se mexe mais se excita. Caberia, antes de tudo, lembrar o papel do ministro Celso de Mello no episódio, para sugerir: já que decidiu por liberar a gravação do encontro convocado pelo presidente, e sabendo que as emissoras de televisão cuidariam de divulgá-la repetidamente, podia ter determinado que as imagens levadas aos telespectadores fossem antecedidas da advertência sobre programas inconvenientes: “Esta gravação é imprópria para menores de 18 anos, por conter cenas inadequadas para bons costumes e para o bem da democracia”. Mais severo quanto a regras de compostura, o ministro dispensaria os palavrões que o presidente cuidou de enfatizar com gestos shakespearianos. Tão farto foi o xingatório, que, viva fosse, Dercy Gonçalves teria enrubecido mais que qualquer abadessa da Idade Média.

Diferentemente, na pauta de seus cuidados o doutor Mello preferiu censurar referências desairosas proferidas sobre China e Paraguai. Isto sim, seria dispensável, porque tudo que é censurado desperta curiosidade, e as embaixadas e seus governos sabem muito bem como obter inconfidências; muito mais em se tratando de indiscrições palacianas. A propósito, o governo precisa abandonar a macaquice de imitar o colega Trump em relação à China, impropriamente tratada meramente como compradora de commodities e vendedora de utilidades. Trata-se de um povo com imenso prestígio internacional, compõe-se de quase bilhão e meio de pessoas, e se orgulha de uma cultura milenar.

O presidente não percebe, mas o palavrão guarda certo pudor quanto ao tempo e ao espaço. Concede-se, dependendo da hora e do lugar, nunca num ambiente oficial, por mais que ali os participantes desfrutem de intimidade. Uma reunião em que se presume a discussão dos interesses do país não pode admitir algo parecido com bate-papo de botequim em tardes domingueiras. (É de se imaginar o constrangimento de um dos convidados, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, cujo avô participou de reuniões ministeriais passadas em que palavrões seriam inconcebíveis; no máximo, a troca de bilhetinhos em latim ou grego, e apenas entre os mais eruditos...)

Interessante notar os tempos que mudam. Quem diria que um capitão pudesse dizer o que disse, entre dois generais, sem ser chamado a penas disciplinares; muito mais quando, numa enxurrada de expressões vulgares, ele vai buscar excremento vacum para se referir aos governadores de São Paulo e Rio de Janeiro. O presidente repele máscara contra epidemia, mas, para evitar agressões verbais, podia adotar uma folha de parreira, tal como Eva escondia seus recatos no paraíso.

Os juristas não são coincidentes quando avaliam a gravação. Divergem, e há os que sentem insuficiência jurídica para enquadrar o presidente e provar sua interferência nos negócios da Polícia Federal, mesmo com indícios de empenho em imiscuir-se. Para os mais cuidadosos, num eventual indiciamento as provas teriam de contar com maior substância.

Mas talvez isso já nem comporte maiores atenções, pelo fato de – muito pior - a reunião não ter se processado em nível condizente com as relações entre os poderes e seus agentes. Principalmente neste momento de extrema gravidade, quando campeia o vírus, soberano e fecundo, que só precisou de poucas semanas para matar 20 mil brasileiros.

Caberia lembrar que se a tragédia sanitária que vive o Brasil não conseguiu habilitar-se para discussões na tal reunião, ao contrário, não faltaram delírios façanhudos, como a ameaça de prisão coletiva de governadores e prefeitos que hesitam em cumprir regras emanadas do governo central. Já o ministro da Educação, Weintraub, a desejar a transformação do Supremo Tribunal em cadeia de luxo, não escondeu certa repulsa a Brasília, que lhe cheira desagradável ao olfato.

Restou uma utilidade na divulgação da matéria. Porque, com base no que ali se viu e se ouviu, tornou-se um pouco mais compreensível esse fenômeno desconcertante no governo Bolsonaro, o entra-e-sai de ministros, com validade rapidamente vencida. Esgotam-se facilmente para consumo, como iogurtes em supermercado.

O momento nacional, agravado pela peste virótica e por perturbações nas relações políticas, chegou a tal perplexidade, sob o império da insegurança, que mesmo a oposição não se sente animada a tirar proveito e entrar em cena; confusa, prefere esperar condições mínimas para refletir e propor. Demais, os fatos têm se agravado ou se desmentem com tamanha celeridade, que nem previsões se permitem; ou falar em eleições, que, mesmo tardiamente, certamente chegarão machucadas pelas radicalizações, como facilmente se sentiu na diversificada reunião de ministros que muito ou pouco falavam; altos falantes ou baixos calados.

O que fez o Brasil para merecer tanto, é coisa que Deus faria generosa caridade se nos explicasse.






terça-feira, 19 de maio de 2020


Depois do vendaval


(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))


Entre palpites e reflexões sérias, no oceano em que navegam ansiedades e temores trazidos pela Covid 19, vamos abrindo espaço para o pós-pandemia, o que aprendemos ou desaprendemos, e como enfrentar os estragos que ela terá deixado. Se o pior dos prejuízos, o que vem cobrando milhares de vidas ceifadas - sinistro que não temos como reparar -, cuidemos então do que vai restar nos escombros. Quanto a esse resto, o que não falta são previsões, diferentes e aleatórios conselhos sobre o que fazer; e nisso certamente levam alguma vantagem os países que sofreram internamente efeitos de guerra, porque aprenderam na carne como se reorganizar em chãos encharcados de sangue. Não tivemos, felizmente, tal experiência, mas há muito a recomendar à população; e muito mais aos governantes que se atropelam e divergem no que dizem e no que instruem, quando são chamados a propor condutas máximas e mínimas frente a um mal feroz.

Haverá lições que não convém esquecer, ainda que epidemias tenham algo de fortuito, não avisam a hora em que pretendem chegar. Sem que falte aos povos sofredores, como os brasileiros, o velho consolo cristão inspirado em Santo Agostinho: Deus não permitiria um mal se dele não se pudesse tirar um bem; isto é, o aprendizado. No mesmo passo, as aulas dos antigos ginásios lembravam romanos do grande império - ad augusta per angusta – um consolo ante a certeza de que é sofrendo que as gentes se aperfeiçoam, bem como os poderosos que as governam.

Assim, como haveria o Brasil não ser chamado a cuidar de seus destinos depois que o vendaval passar? Quando começar a abrir o livro das lições que vão se escrevendo com dor e lágrimas talvez o país aprenda que cuidados com a saúde pública sempre devem preceder a prioridade da economia, quando se torna arrogante e insensível; porque esta não vive sem aquela, embora cuidariam bem se ambas caminhassem preocupadas em mútuas ajudas. Ficou claro: bastou o primeiro quadrimestre deste fatídico 2020 para que ruíssem as expectativas, ainda insepultas, da retomada do desenvolvimento, a produtividade morro abaixo, orçamentos lançados ao espaço e frustração na ampliação não apenas do emprego, como também da empregabilidade.

Não menos evidente terá ficado que temos diretrizes insuficientemente confiáveis na conduta das políticas sanitárias, se é chegada a hora de enfrentar e vencer males contagiosos; dos quais, aliás, são velhas conhecidas as pobres populações distantes nos agrestes, nos sertões e nas palafitas amazônicas. Bastaria lembrar nossa dolorosa vulnerabilidade, a fratura exposta na recente sucessão de ministros da saúde, desestimulados pelas receitas pessoais do presidente da República, que tem se revelado especialista em assuntos gerais no campo da saúde. A insegurança no entra-e-sai de ministros numa área que vive um dos maiores dramas da História brasileira tem deixado o mundo perplexo. E não é pra menos.

Esses quatro meses de internação domiciliar vão construindo extensa pauta de desafios. Um dos quais, para não citar muitos, é como lidar, a partir de agora, com o ensino em primeiro e segundo graus. A emergencial conexão digital nos lares, a que hoje estão condenados milhões de trabalhadores, crianças e adolescentes não pode servir de estímulo aos excessos de hibernação. Eles têm de conviver fora de casa, que não é nem pode ser permanente oficina ou escritório; não é adequada sala de aula para estudantes; muito menos cenário para afetos que as pessoas têm de trocar presencialmente. Se a internet nunca poderá morrer, será muito desagradável vê-la como produtora de reféns entediados.

Covid 19 fez com que batessem de frente os poderes constituídos do Brasil. Executivo desentendeu-se mais ainda com juízes da suprema corte; e estes, entre si, também rompem com os limites do direito de divergir; algumas vezes partem para o desaforo. Não menos escassas são boas relações do Palácio do Planalto com o Congresso, agravadas pelo temperamento presidencial, cuja imprevisibilidade tem sido robusta contribuição para dissidências, só momentaneamente aplainadas quando se abre o balcão de adesões do chamado Centrão. Os bons negócios não se vexaram no momento de calamidade; pelo contrário, exatamente o clima é que tem propiciado acertos.

Há em formação uma consciência coletiva a indicar que após o coronavírus muitas coisas vão mudar; aqui, como em quase parte do mundo. Mas dizer que nada será como antes talvez comporte certo exagero, como a comparação com a Peste Negra da Baixa Idade Média; esta sim rompeu com estruturas sociais e morais, mudou a paisagem do mundo, impôs melhor pensamento científico e terá aberto os primeiros caminhos para a revolução industrial. Agora não tanto; porém, o que se transformar que seja para melhor. E lições sejam bem assimiladas, para alimentar a esperança de que a tragédia nunca mais se repetirá.





terça-feira, 12 de maio de 2020



O risco da desmotivação



((Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil”))


Não há como elaborar previsões sobre as próximas eleições, originalmente marcadas para outubro. A razão é simples: tomando-se por base a realidade de hoje e o possível num futuro próximo, é forçoso reconhecer que o país corre o risco de não poder cercá-las com um mínimo de segurança e motivação; para não se falar da possibilidade de coincidirem com clima social desfavorável, consequência da passagem devastadora do coronavírus. Na verdade, nem se poderia dizer com total segurança se nos quatro meses que restam para a campanha a pandemia já terá partido, temor que tem sido abonado por infectologistas à espera de dias piores.

O calendário eleitoral tem sacrificado etapas; desorganizou-se. O processo pode ser transferido para dezembro, na expectativa de que até lá a vida nacional tenha se normalizado. Há, contudo uma imposição real: admitida a necessidade do adiamento, a decisão há de ser tomada logo, o quanto antes, de forma que o Congresso seja chamado a se pronunciar, pois as datas do primeiro e segundo turnos são definidas na Constituição. Para tanto poderia se alegar a exigência emergencial, com um país em sobressalto na calamidade pública, o que, no parecer de juristas, não é o suficiente para relegar o que consagra a lei maior.

Definição nesse sentido ainda esbarra no capricho de uma coincidência. Só no último dia útil de maio (e o mês já vai arquivando a primeira quinzena) é que assumirá o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luiz Barroso, impossibilitado de adotar a decisão antes da posse; o decidir também escapa da pauta da presidente que o antecede, pois durante seu mandato a alteração de datas não encontra justificativa. A corte se vê diante da situação em que o remédio indispensável tem de aguardar o momento certo para ser ministrado.

Trata-se de situação desconfortável para o Tribunal. Não podendo convocar o eleitorado em outubro, terá de fazê-lo, no máximo em dezembro, pois no primeiro dia de janeiro do ano seguinte os atuais prefeitos e vereadores terão extintos seus mandatos. O ministro Barroso haverá de redobrar esperanças e orações; e, tanto como nós outros, esperar que uma segunda onda do mal se dissipe antes mesmo que se concretize; porque epidemias ou desaparecem com a mesma ligeireza com que chegam ou se robustecem para retornar mais ferozes.

Mas a questão primeira nem está no campo da interpretação que se possa extrair da lei, nem mesmo de possível elasticidade aplicada ao calendário das urnas. Antes cabe indagar como estará se sentindo, social e civicamente, o eleitor depois de uma temporada de tensões, a morte rondando em estatísticas terroríficas, as instituições vacilantes, a população exausta. O que terão os candidatos a dizer e os eleitores a ouvir? Porque quando candidatos e partidos subirem ao palanque lá já encontrarão uma população que o vírus ajudou a abalar e torná-la ainda mais descrente dos poderes, dos governantes e dos discursos em decomposição na química de prodígios.

O que terão a dizer para um povo que os próprios políticos transformaram em legiões de desacorçoados?, se o que têm mesmo a mostrar são os eternos torneios de elites e de vaidades, como o coronavírus tem cuidado de escancarar. A montagem dos instrumentos de defesa da população contra o mal – como explicarão os candidatos? - expôs o divórcio entre as autoridades e seus deveres. Como explicar?, se o pecado cometem tanto os governantes da hora como os que os criticam.

Pairam dúvidas sobre o clima que haveremos de respirar na hora dos sufrágios nos municípios; muito mais pela desmotivação e cansaço de esperar dias melhores e horizontes mais claros, do que propriamente pelo dever de votar. Talvez não se deva confiar em demasia nos otimistas, que caçam o exemplo antecedente, pois para eles a eleição 1918 foi normal, embora também fosse o ano da tragédia da Gripe Espanhola. É inválida a comparação, porque a terrível epidemia chegou em setembro, e a eleição de Rodrigues Alves já se dera em março, embora isso não impedisse que o presidente se tornasse sua vítima ilustre, morrendo no janeiro seguinte.



terça-feira, 5 de maio de 2020



Toda manhã um pesadelo

(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))


Neste Brasil dos nossos dias, não bastasse estar competindo com outros países na sinistra estatística de saber quem perde mais vidas para a Covid-19, ainda temos de assistir a outra tragédia matinal. É quando se desperta do sono com que fomos dormir na noite anterior, e, agora bem acordados, entrar no pesadelo do dia. Basta captar o noticiário matinal para que o brasileiro seja condenado a novo susto. E não há opção entre dois incômodos fatais: o vírus teimoso, que não se manca de já haver produzido consideráveis estragos, ou é o pandemônio político, que vem se associando ao mal virótico para infernizar a vida nacional. É espantoso como nossa gente ainda consegue reunir cacos de esperança para perseverar no dia seguinte.


A nunca desarmonia entre os agentes dos poderes, contundentemente divergentes, acabou impondo a perplexidade a um país que conseguiu inverter a ordem natural da química do sono. É só abrir os olhos para, acordando, logo mergulha na sensação do pesadelo. O que vai acontecer hoje? E, seja lá o que for, aonde iremos amanhã? Que nova crise vai enriquecer o elenco de incertezas que desaba sobre nós? O pesadelo é o nosso indigesto café da manhã. Antes o letargo tivesse dividido espaço com o sono, porque bastaria sair da cama para que as aflições de dissipassem. No Brasil do agora ninguém entende, porque ninguém se entende. Freud e sua Interpretação dos Sonhos teriam sucumbido a um estresse irreversível se vivessem para colocar o Brasil num imenso divã.


Interessante também é notar que os entreveros que nascem do choque de interesses e na disputa de prestígio já não se dão apenas entre homens e partidos. São as próprias instituições que conflagram, numa altercação que nem faz concessões aos bons modos, primeira coisa que se poderia cobrar de pessoas que são parte dos poderes constituídos. A novidade mais recente, que se tornou algo extremamente delicado, foi quando o presidente da República informou, publicamente, que quase mergulhamos num impasse institucional na noite anterior, embora é sabido que problema desse vulto deixa de ser apenas um risco; para situação de tamanha gravidade basta que seja anunciado. Não há meio termo em crise institucional, assim como não há mulher mais ou menos grávida… Sem risco de cometer equívoco ou pessimismo em excesso, é preciso afirmar que somos contemporâneos de um quadro psicopatológico massificado, porque pelos poderes falam e decidem os que apreciam tumultuar as águas de um já bastante tumultuado oceano. Haveria outro diagnóstico?

Vive-se aos solavancos, que, como se observou, prosperam com pesadelos que levantam com a população. São apreensões sem preconceitos e sem preferências, democraticamente distribuídas entre riscos e pobres, venham eles de onde vierem, pensem o que pensarem. De tal forma que, quando se avalia o perfil dos principais atores do painel político, a virulência de suas palavras e de seus gestos, chega-se a temer que esteja a rondar o Planalto o projeto fatídico que aposta no caos, onde o objeto não é defender e preservar as instituições, mas condená-las à quarentena, sem que se saiba quando seria possível repatriá-las ao abrigo da Constituição; o risco de serem humilhadas as instituições; conviventes e reclusas com as multidões que se escondem do tormento virótico.

Estas anotações talvez possam se justificar por obra de uma coincidência, pois hoje se comemora o Dia da Língua Portuguesa; e, por conseguinte, o momento para se refletir sobre o sagrado poder da palavra. Pois ela – a palavra - tem sido a arma a que lamentavelmente se recorre para a montagem do conflitos entre direita e esquerda; essa antítese que virou velharia e que nossos políticos não conseguem superar. Faz-se urgente retomar a essência das palavras; como, aliás, já defendia Castello, criador desta coluna, em abril de 1976, rebelando-se contra políticos que confundem o significado de oposição e contestação.

O sagrado exercício da palavra, o momento adequado em que é proferida, não pode ser relegado por homens que têm o dever de conduzir os destinos nacionais; a começa por quem cabe dar o exemplo - o presidente da República. Mas não há de ser mera preocupação semântica recomendada por assessores, mas fruto de temperamento mais cuidadoso a ser criado. Sem o diálogo produtivo serão vãs as esperanças de o país romper desafios.