terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

 


Armas e palavras impróprias



(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil” ))


A segunda quinzena de fevereiro, se ainda conservou nossas aflições como reféns da pandemia, permite, pelo menos, que duas outras questões suscitem discussões prolongadas, ainda que nem sempre para maior utilidade. Mas são questões que não se esgotaram em si mesmas; na verdade, servem para animar novos debates, e melhor que sejam produtivos e desapaixonados.


São dois temas: a imunidade parlamentar, não raro confundida para acobertar crimes, como se pretendeu, mais recentemente, no caso do destemperado deputado Daniel Silveira, que disparou, com violência inaudita, contra os ministros do Supremo Tribunal, ofendendo-os moralmente, além de pregar o fechamento da Corte, à qual atribui total inutilidade. O segundo tema em pauta é a decisão do presidente Bolsonaro de ampliar facilidades no uso de armas de fogo pelos cidadãos; não só isso, pretende também estimular o acesso comum a elas.


A bem pensar, entre o vulcão de impropérios que o deputado despejou em larvas incandescentes sobre homens togados, e a fixação do presidente em criar uma sociedade armada, não é tarefa fácil eleger qual pesa mais na balança dos desserviços. Contudo, ambos aqueles comportamentos fazem o favor da trazer à opinião pública questões que não devem ficar condenadas ao esquecimento. Precisamos falar muito sobre elas.


No episódio do deputado fluminense, que acabou sem respaldo da grande maioria de seus pares, o que se deseja, ao cabo, é a melhor interpretação do artigo 53 da Constituição, cujo espírito, na sua essência, não vai além de conferir, ao detentor de mandato, suficiente garantia para exercê-lo, livremente, sem pressões. Foi cristalina a intenção do legislador. Mas Daniel, parece, preferiu interpretar o dispositivo de maneira grotesca, à velha moda brutamonte que guardou de experiências policialescas. Extrapolou ao usar um vídeo para ataques morais aos integrantes do Supremo, sem embargo de alguns deles darem à sociedade razões para não estimá-los. De qualquer forma, inconcebível aquele nível de insulto, já não se diz apenas quanto a magistrados, mas inadequado a qualquer cidadão que dele possa se tornar alvo.


As críticas ao STF, tão ácidas, constituem nova oportunidade para o Congresso ferir um problema que preocupa, não é de hoje. Melhor interpretado, o artigo 53 não é escudo, não pode continuar se prestando ( o caso Daniel não é inédito) a confundir o que é imune e o que é impune. Os céus testemunham: essa confusão, quanta vez serviu para acobertar práticas criminosas de parlamentares!



Vou à segunda questão em tela. Desta vez, o presidente Bolsonaro incursionou pra valer no plano de armamento da população, quando se pensava, contrariamente, que aproveitasse a semana de descanso em Santa Catarina, e refletisse melhor sobre os efeitos imediatos e futuros dessa medida. A ideia não é nova, porque ele já a trazia da campanha eleitoral. E, desde então, dividiu, como ainda hoje divide, opiniões e paixões.


Não há como desprezar os temores pelos resultados, imediatos e futuros, nessa sólida preocupação do presidente Bolsonaro em fazer do brasileiro um cidadão armado, a pretexto de lhe oferecer segurança, quando o desejável seria que ele cuidasse de desarmar os bandidos. Fácil de compreender, porque é na mão do delinquente que o revólver se torna realmente perigoso; na rua ou no domicílio, o homem comum não foi educado para atirar, treme na hora de disparar, nem mesmo para a defesa pessoal ou do patrimônio. Pode o presidente anotar, para ser cobrado, com o passar do tempo: o criminoso continuará levando vantagem nos casos da violência confrontada.


Esperava-se, de boa vontade, que ele avaliasse as inconveniências, como também os crescentes perigos, num momento em que vai prosperando o feminicídio, resultante de conflitos conjugais, quando uma arma em casa pode ser o recurso trágico. Divergências entre casais, que logo depois estariam superadas, no momento da tensão extrema costumam facilitar o uso da arma. Não apenas entre familiares desesperados, mas o revólver é permanente apelo aos que padecem de angústia na solidão em casa, os subjugados à depressão, os suicidas em potencial. O diabo sempre na espreita.


Entre os que nutrem preocupações diferentes das de Bolsonaro não falta quem seja capaz de citar inúmeros acidentes causados pela arma displicente nas gavetas, ao alcance de qualquer criança. Os instrumentos de morte são irmãos gêmeos das tragédias com inocentes.


Observaria o presidente, num momento de melhor reflexão, que em qualquer lugar do mundo onde se combateu, com êxito, a criminalidade, o alvo foi tirar a arma que o bandido tem no coldre; não no bolso de pessoas pacíficas. Recorra-se ao exemplo da tolerância zero em Nova York.

Por fim, convém indagar se esse mesmo governo que convoca às armas, dispõe de estrutura de fiscalização suficiente para estabelecer controles mínimos, tanto na qualidade do instrumento letal, como para conter sua comercialização indiscriminada, e impor o cumprimento dos dispositivos legais que devem reger a matéria. Ficam minhas dúvidas.





terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

 



A desordem partidária


(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil”))


Essa desarrumação partidária em que vivemos tem algo a ver com as inseguranças com que se veste a democracia brasileira, onde não tem faltado confuso jogo de cores e tonalidades, gerando uma espécie de marafunda em ópera burlesca. Disso resulta que nossos políticos são, a um só tempo, autores e atores, alternando-se entre vítimas e beneficiários, com um mesmo pano de fundo. Os partidos, em profusão, tornaram-se meros grupos, que se improvisam, navegam de acordo com os ventos da ocasião, preocupados apenas onde ancorar as conveniências. Já não se preocupam se o país destroçado corre o risco de encalhar.


Há quem ensine que, depois dos liberais e conservadores do Império, os partidos jamais escaparam da ditadura das improvisações; das momentâneas circunstâncias. Que digam os velhos mineiros, detentores de enorme influência na Velha República, hábeis na arte de ceder, mas sem abrir mão de certa prudência e do comedimento que faltam hoje. Nem foi exceção o arroubo de 1889, quando um diretório do PRM dissolveu-se para protestar contra a adesão de antigos monarquistas. Hoje as adesões se operam por atacado e a granel. Estão na moda.


Não é preciso escarafunchar páginas do passado distante, porque os dias que correm são o bastante para expor ao Brasil a quanto anda a fragilidade partidária. Têm razão os que se preocupam com isso. Porque não há como praticar a política sem partidos vigorosos, razoavelmente definidos e não tão frágeis como os temos agora. Ainda meses, para confirmar, viu-se o presidente Bolsonaro, mesmo com o Diário Oficial na mesa e a caneta na mão, fracassar na tentativa de organizar a Aliança para o Brasil, com a qual desejou hastear sua nova bandeira. Interessante é que, no contraponto, sem saber criar, ele se revela hábil para promover cizania e divisões.


Essas forças políticas se satisfazem com o poder imediato. A importância das legendas mede-se pelo momento, não pelo que pontificam seus programas originais, vaga e superficialmente lembrados. A balbúrdia que domina nesse campo nem exclui esquisitices. Bolsonaro, de novo citado, é um exemplo: ele desembarcou da nau vitoriosa do PSL, mas não saiu totalmente; mantém nele um pedaço do cordão umbilical que ficou da eleição de 2018.


Veio fevereiro, e logo deixou sua marca no painel da falência dessas organizações. A eleição dos presidentes do Senado e da Câmara revelou-se um festival de deslealdades partidárias e ideológicas. O senador Rodrigo Pacheco não se acanhou de eleger-se na garupa de momentâneo conluio, que aproximou esquerda e direita, enquanto na Câmara, sob inspiração não diferente, assistia-se a uma singular disputa pela Segunda Secretaria, quando a candidatura avulsa de Marília Arraes, do PT, bateu, com apoio de adversários ideológicos, dois outros petistas... Outro estupro da unidade de bancada machucou gravemente o deputado Rodrigo Maia, antes o expoente consagrado do DEM. Caiu atirando, denunciou traições, e afivela as malas para buscar outras plagas.


Sem serem exceção nesse enredo de tensões aparecem os tucanos. Anteciparam divergências internas para cuidar da sucessão presidencial, confiando ao governador Dória a construção da desarmonia, como se desejassem, com ele, sepultar a primeira realidade de qualquer eleição, que é somar, para depois multiplicar. Nessa hora, dividir é tropeço só para principiantes.


Interessante observar que, mesmo quando a ditadura podia se impor, nem assim os generais hesitaram em juntar as forças que a apoiavam; pelo contrário, foram elaborados poderosos instrumentos para mantê-las unidas em torno dos princípios da fidelidade. Foi com essa intenção que o generalato e juristas de plantão não tardaram em inventar as sublegendas, o voto vinculado em eleição majoritária e o bipartidarismo amarrador. Muitos governistas, fiéis por conveniência ou por submissão, marcharam como se fossem os Voluntários da Pátria: mãos amarradas nas costas, fuzil na nuca e pouca reclamaçãoEntendiam os ditadores que fidelidade partidária é preciso, ainda que artificial, sob o tacão das gemadas.


Quando as tropas de 64 e seus comandantes deram adeus aos políticos, e voltaram aos quartéis, sem olhar para trás, como a mulher de Jó, para não verem as ruínas salgadas, as lideranças civis sobreviventes cuidaram de buscar espaços. Com tanto tempo de limitado oxigênio, queriam um lugar ao sol, com escassos ideais, carregando apenas a promessa de redemocratização; aliás, para confirmar uma tradição muito nossa: somos um país com mais redemocratização do que democratização.


Depois dessas longas temporadas de experiências, parece claro que a política nacional se ressente de partidos mais nítidos, melhor definidos quanto à forma e ao conteúdo; quando deviam estar reduzidos a um número capaz de abrigar e representar as diversas correntes do pensamento nacional. Longe dessa fartura de 33!, que desobriga a todos de preservar um mínimo de identidade.


Há duas decorrências significativas causadas pelas distorções analisadas. A primeira é que os partidos, da maneira como se mostram, tornaram-se robusta contribuição para desestimular jovens e velhos a se filiarem, porque não conseguem ver neles um atrativo real. Pergunta-se aos jovens, hoje, em qual dessas 33 siglas gostariam de filiar-se. Certamente, preferem confiar seu ideal a um time de futebol, porque ali, ganhando ou perdendo, seja quem for o dirigente, sempre fica a coerência. Decorre também da indigência dessas representações o vácuo que se abre à incursão de segmentos estranhos à política, o que costumeiramente se dá entre evangélicos e militares.


Pois bem, pelo que se vê, com esses partidos, como são e como estão, não vamos sair do lugar para ir a lugar algum.



terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

 


CASAMENTO


1 - A fama de ser impermeável a conselhos não pode levar o presidente Bolsonaro a fazer ouvidos moucos à advertência de que não é conveniente confiar muito no Centrão, mesmo que tenha sido o principal instrumento para ganhar a presidência da Câmara e do Senado.


2 – A experiência mostra que o Centrão apenas dá apoio ocasional, e pode deixar o presidente “na mão”, se lhe for possível identificar parceiro mais conveniente. Sobre esse grupo de deputados já se disse que não se vende; aluga-se…


3 - Outra comparação em voga, mas com a mesma intenção de mostrar ao presidente o perigo que enfrenta, é que sua aproximação com o Centrão tem o mesmo valor dos casamentos da Idade Média, movido apenas a interesses circunstanciais.


4 Cessados os interesses, os reis voltavam às armas. Quando se aproximar a sucessão presidencial, o presidente pode ver em risco seu casamento político. A menos que tenha disposição de aumentar os dotes.


5 – O calendário de boa convivência, como planos de saúde, parece ter carência de quatro ou cinco meses, o suficiente para o encaminhamento das reformas fiscal e administrativa.


INFERNO”


Mais uma vez, ao conversar com apoiadores, o presidente Bolsonaro queixa-se do peso das responsabilidades e das muitas dores de cabeça que enfeitam o mandato. Diz que sua vida transformou-se num “inferno”. Não é o primeiro e nem será o último a elaborar queixa nesse sentido, pois os governantes gostam de falar em imensos sacrifícios a que estão sujeitos. Mas todos gostam de continuar no lugar onde chegaram. E, como Bolsonaro, podendo, querem mais um mandato.

Carlos Lacerda, mais sincero, dizia que “esse negócio de sacrifício é bobagem. Governar é muito bom”.


PESSIMISMO


É invariável. Quando chegam os últimos meses do ano, formulam-se previsões pessimistas sobre as safras, indicando-se, geralmente, queda de 25 a 30 por cento. Os culpados: geadas, tempestades e o governo, que só financia com juros altos. Mas, quando vêm as colheitas, novos recordes… Ainda recentemente, previu-se sinistramente pela sorte da soja, mas ela acaba de bater novo recorde, 130 milhões de toneladas.


REFERÊNCIA


Para o Ministério do Desenvolvimento Regional, Juiz de Fora tornou-se referência nos convênios que possibilitaram a realização de obras de contenção de encostras, distribuídas por 15 bairros que apresentavam maiores riscos. Essas obras se realizaram, principalmente, nas duas gestões do prefeito Bruno Siqueira,

não se esquecendo do empenho decisivo do então secretário de Obras, Amaury Couri.


APETITE CENTRAL


A novidade deste começo de semana é que o Centrão, já cobrando os votos que deu para eleger os presidentes da Câmara e do Senado, quer abocanhar ministérios atualmente administrados por militares. Não se sabe da capacidade de resistência do presidente. São grandes as preocupações, porque os apoiadores, famélicos, estão de olho em cargos da equipe do ministro Tarcísio, da Infraestrutura, o ministério que melhor funciona nesse governo.


NOVO COMANDO


A direção nacional do PSL deve anuncia mudanças no comando estadual do partido, depois que o deputado Charlles Evangelista anunciou que não mais vai dirigir a executiva mineira. O deputado enumera uma série de avanços que obteve, mas, com toda certeza, não digeriu a derrota em Juiz de Fora, seu reduto.Ver a candidatura de Sheila Oliveira em quarto lugar o aborreceu.


RADICAIS


Com a derrota que acabam de sofrer na eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, o caminho que resta aos partidos de oposição é assumir posições ainda mais radicais em relação ao governo Bolsonaro. É opinião de muitos que analisam o momento político, como o ex-presidente Fernando Henrique.



AGONIZANTE


Anos depois de ajudar a levantar o moral dos brasileiros, com a caça que moveu aos corruptos, a Lavo Jato parece sentir que lhe escapam as forças para resistir às incursões dos que corromperam; ou os que têm simpatias ou interesses por quem assalta este país. A Lava Jato agoniza. Muitas condenações poderão ser revistas. Às ruas, com os bandidos!


MORALIDADE?


Muito susto, quando o novo presidente da Câmara, Arthur Lira, demitiu mais de 500 ocupantes de casos de confiança na Casa, por não se saber que eram tantos. Logo foi aplaudido por quem viu no ato uma boa intenção moralizadora. Mas, na verdade, a decisão é abrir espaço para a nomeação de quem vai chegando com apoio dos novos dirigentes.



CARNAVAL


São preocupantes as previsões quanto ao nível de irresponsabilidade a que amos na próxima semana, mesmo com o carnaval, que foi oficialmente cancelado, como forma de evitar que se agravem as estatísticas da pandemia. A preocupação justifica-se, porque milhares de foliões certamente estarão dispostos a desconhecer as orientações sanitárias. Rei Momo sempre foi mais forte.


 


Um cenário de prioridades


(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil” ))


A composição das mesas diretoras do Congresso Nacional, que teve o presidente Bolsonaro como patrono, e o encheu de orgulho, se conteve, por hora, o fôlego dos adversários e o apetite dos amigos, não o bastante para engavetar projetos que pretendem ter logo as bênçãos de senadores e deputados. A incerteza quanto ao tempo de validade do casamento entre os dois Poderes está no fato de que a celebração tem tudo para assemelhar-se àquelas núpcias da Idade Média, inspiradas apenas nos interesses imediatos dos feudos. Estes, quando ofendidos, voltavam às armas. O noivo poderoso do nosso planalto deve saber que a lealdade do Centrão é tênue e circunstancial, tal como os romances medievais.


De outro lado, logo se revelou que na base do festejado diálogo incluem-se as reformas administrativa e fiscal, temas que se levantam, sem que seja possível negar-lhe importância e prioridade. São áreas em que, de fato, o Brasil padece de atraso, e nelas é possível identificar muitos dos problemas do dia a dia. São duas questões que sobrenadam muito acima de uma outra fixação presidencial, pedindo aos parlamentares que se associem à sua intenção de ver a população de armas em punho, e policiais menos tolerantes no enfrentamento com o crime.


Mas, se está em causa elaborar a linha de prioridades capazes de frequentar as relações Executivo - Legislativo, não seria demais oferecer espaço para o reexame da política externa, infestada de vácuos e remendos, além de pontilhada de dubiedades. O Brasil tateia e revela insegurança em alguns procedimentos, mesmo que evidências houvessem contribuído para recomendar comedimento. Não faltam exemplos de que é preciso introduzir aperfeiçoamentos, algo de que a chancelaria e o Parlamento poderiam se encarregar, sem que, nesse particular, seja prudente atribuir à diplomacia menos decisiva. Mas os políticos com mandato têm obrigação de atuar.


Além dos visíveis sinais de que têm se deteriorado as relações com alguns governos, a pandemia veio oferecer uma advertência, também nesse setor. Contribuiu para expor nossa fragilidade, no momento em que foi preciso angariar insumos que não temos para produzir vacinas. Porque, cedendo a apaixonadas convicções direitistas, o governo revelou-se inseguro na hora de inscrever-se como cliente daquele material na Rússia e na China; esta vista, por delirantes assessores, como ideologicamente inconveniente; e, pior, produtora do vírus sinistro... Como se fosse possível inocular restos mortíferos de foice e martelo.


É longo o caminho a percorrer na tarefa de apagar pegadas que o atual governo veio deixando em incursões precipitadas, que dependiam de avaliações e cuidados, virtudes que instruem os melhores círculos diplomáticos do mundo. A Comissão de Relações Exteriores da Câmara, raramente ouvida, teria agora boa oportunidade para recuperar tempo perdido, já que a hora é de definir prioridades.


A queixa contra decisões apressadas encontrou, como primeiro exemplo, na atual gestão, o apoio dado ao governo do Estado de Israel, ao desejar transferir sua sede para Jerusalém, algo que, além de estimular a guerra entre judeus e palestinos, conflitou com histórica definição das Nações Unidas sobre a Cidade-Santa. Equívoco que se agravou com a explicação de que o presidente Bolsonaro nada mais pretendia, além de acatar um anseio dos evangélicos. Parta de onde tenha partido a ideia, fomos obrigados a esquecer e recuar, além do constrangimento imposto ao premier israelense Benjamin Natanyahu, que aqui, gratíssimo, permaneceu alguns dias, animado pelo sol tropical, que enfrentou graças a generosas doses de caipirinha.



Inovação mais recente, esta ameaçando desdobramentos, foi a desmedida simpatia devotada ao colega Trump, dos Estados Unidos, o que, em parte, levou a atitudes hostis em relação aos chineses, não sem causar perplexidade, pois são eles grandes importadores de nossos commodities. Atitude do vendedor que fecha as portas da loja ao maior comprador.


Nas pegadas de Trump, mesmo sabendo que sossobrava a nau do republicano, o governo Bolsonaro causou maior estranheza, ao se revelar capaz de valorizar excessivamente impressões pessoais, menosprezando a estrela ascendente dos democratas, que, mesmo antes de chegarem ao poder, já manifestavam reservas em relação ao Brasil, pois consideram que não sabemos apagar o fogo da Amazônia, embora também não saibam como apagá-lo na Califórnia.


Há quem recomende ao presidente Joe Biden um jogo bruto com o governo brasileiro nas questões ambientais, aplicando-lhe severa sanção nas importações e na política diplomática. É pouco provável que chegue aos extremos, porque, no reverso, acabaria jogando o sentimento nacionalista no colo de Bolsonaro, fortalecendo-o para a reeleição. Biden não sabe o bem que faria, com o mal que pretendesse fazer.


Mas, acima de tudo, de erros passados, de simpatias ou inconveniências, o que cabe é o Congresso reconhecer o relevo da questão, e abrir espaço, entre as prioridades mais legítimas, para a avaliação da política externa, que, sob vários aspectos, tem a ver com a riqueza e a prosperidade do país. Se nem tudo está errado, há tortos a serem endireitados. Disso sabem muitos entre experientes diplomatas, que deviam ser consultados pelas casas parlamentares, independentemente da lealdade daqueles funcionários às instâncias superiores de hierarquia.


Saiam de onde saírem, mas que venham principalmente do Congresso, serão oportunos os esforços para uma avaliação crítica de nossas relações com o resto do mundo.



terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

 

Bolsonarismo explícito



((Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil” ))


sbjeto de constatação. Se o impossível é a única coisa realmente impossível de não acontecer nesse governo, ninguém melhor que o presidente para produzir palavras e atos que, em generosas cascatas, têm o condão de criar situações polêmicas e gerar confusão na opinião pública. Em rigor, ninguém a ele se iguala na promoção de surpresas que nascem quando a boca se abre. De tal forma, que hoje, neste país, as pessoas despertam sem saber das consequências do discurso mais recente que ele obrou, como também ignoram se suas declarações contribuirão para a Bolsa cair ou se um ministro desventurado vai amanhecer na marca do pênalti. O desjejum do Brasil costuma tornar-se amargo, mesmo se temperado com o leite mais condensado do mercado.


O doutor Bolsonaro excedeu-se, na semana passada, quando, recorrendo ao seu cardápio popularesco, escolheu vaso impróprio para estocar latas daquele produto, depois de desconsiderar legítimo o direito da imprensa de pedir explicações sobre gastos que pareciam exagerados, sobretudo em itens de duvidosa necessidade nas cozinhas do governo. Não explicou, mas deu ao episódio tratamento vulgar e obsceno, atitude agravada por ser perpetrada em ato público. Do que, aliás, restou outra dúvida, de difícil explicação: o que faz as pessoas sérias ficarem mais coradas, de tanta vergonha, a linguagem chula do presidente ou a claque dos ouvintes que o aplaudiram? A veneranda Dercy Gonçalves e seus auditórios teriam sido mais comedidos.


Tudo, menos a vulgaridade, diria o grande poeta português, se ouvido pelo presidente.


Depois do espetáculo deprimente, supõe-se, como conveniente, por mais constrangedor que seja, que, a partir de agora, os pronunciamentos presidenciais na televisão sejam antecedidos da tradicional advertência dos filmes indecentes e de conteúdo não recomendável: programa impróprio para menores de 14 anos, por conter palavras e atos de bolsonarismo explícito. O presidente vai falar, tiremos as crianças da sala.


Mas, quando essa temporada chuleira passar, se passar, questões mais importantes e urgentes poderão ganhar a preferência dos pronunciamentos oficiais. Possível, então, que cessem as agressões praticadas, indistintamente, contra a mídia, que tem preferido ligar pouco para os destemperos da fonte de onde partem as ofensas, e despreza as expressões mal ditas.


O que ainda não foi possível compreender, e surpreende, é que nos gabinetes e no recesso palaciano não surja alguém com autoridade para cobrar dele, pelo menos, - se nada mais for possível –, um palavreado diferenciado de gafieira.


Em outra ponta dos resultados, pergunta-se como os disparates oficiais têm repercutido no Exterior. Afora os constrangimentos internos, o nível inferior das palavras do chefe do Executivo também repercutem negativamente junto a outros governos e instituições, podendo chegar a comprometer o diálogo respeitoso. Porque um presidente tem direito de pensar e até resmungar palavrões, mas nunca pronunciá-los, dirão os colegas estrangeiros sobre a importância dos bons modos. Frente ao mundo, o presidente precisa ser levado a sério, e a palavra é sua primeira e mais importante credencial para merecer respeito. Sinal preocupante viu-se, há dias, em Washington, quando a jornalista quis saber de Joe Biden seus planos para conversar com o colega brasileiro, o que ele respondeu, em silêncio, apenas com sorriso sarcástico, num gesto de total desconsideração.


Mais do que nunca, é perigoso abrir mão do respeito, tanto interna como externamente, e para isso chacotas que azedamleite condensado em nada contribuem.


Insistindo nas repercussões externas da verve grosseira, é preciso lembrar que a conduta pessoal dos dirigentes é fundamental, cada vez mais indispensável num mundo em que as relações em torno dele vão se estreitando cada vez mais. Os estadistas têm de revelar seriedade e respeito, a começar nas relações entre governante e governados. Quando isso falta, se por primeiro não se constrói internamente, as relações externas também acabam se ofendendo.


O presidente precisa se impor, ao peso das responsabilidades que carrega, num mundo cada vez mais conturbado e íntimo, onde ninguém já é dono de totais suficiências para orgulhar-se demais; e faria bem se avaliasse a crescente degradação a que tem submetido sua imagem em outros países, onde a imprensa lhe dedica escasso respeito. Repensar-se e medir bem o que está para falar, começando pela maneira como continua se portando frente ao vírus da Covid 19, em contraste com a realidade da pandemia apocalíptica, que passa e flagela, mas também ensina a ele e a todos. ( De que valeram as hostilidades gratuitas do Planalto em relação à China, em cujas portas fomos bater, pedir boa vontade e disputar insumos para a produção de vacinas? Ou, depois de tantos desencontros com a Venezuela?, termos de agradecer o oxigênio solidário que não tínhamos para salvar vidas no Amazonas).


O mundo é a escola de interdependências, onde presidentes, reis, rainhas e líderes religiosos não podem prosperar sem que se façam respeitados, mesmo que faltem razões para admirações mútuas.


Bolsonaro xinga a imprensa de casa, que não reage, nem poderia reagir, porque é impossível dar-lhe tratamento no mesmo nível de obscenidades, mas a repercussão externa é desabonadora. Bate aqui, ressoa lá fora. Há alguém na antessala para dizer isso a ele?