terça-feira, 31 de dezembro de 2024

 


Horror à transparência

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

Quase inevitável, nesta hora de passagem de ano, a política, tal como as pessoas, deixar-se dominar por alguma esperança em dias mais suaves, menos conflituosos. Natural que seja assim, por mais que as aparências possam insinuar o contrário. Com a chegada do novo ano, algo melhor ou menos pior. Num passado que já vai distante, Otto Lara Resende escreveu neste jornal que esse sentimento é como um véu oculto; estranho sentimento que ”morde em silêncio o coração distraído”. Outros lembrarão o notável escritor para dizer, entre nós, que qualquer expectativa otimista será bem aceita, até porque, se afogado no pessimismo, aí é que o Brasil não vai mesmo pra frente. Tomara.

Nesta quadra da vida brasileira faz bem desejar e esperar o bem, sem, contudo, descuidar que, para tanto, são necessários ingentes esforços, começando por reconhecer que vão amanhecer dias de inevitáveis desafios. Devemos estar prontos para enfrentá-los, já que o destino tem empurrado o país para grandes definições, sobretudo corajosas. Não podemos continuar contornando obstáculos, passando à margem dos desafios, como se os trovões e relâmpagos não fossem para os nossos céus.

Sobre as febres que hoje atormentam, para citar apenas uma entre as que vão levando a temperatura insuportável, figuram as famosas emendas parlamentares, não apenas pelo escândalo de jogarem livremente com bilhões de reais dos cofres públicos, mas porque estão condenadas ao financiamento de muitos projetos suspeitos; suspeição, sim, pelos próprios deputados confessada, quando resistem a demonstrar, com clareza, a finalidade do dinheiro, sua aplicação, as obras e serviços para os quais foram votadas. Um poder constituído, se legitimamente representa o interesse geral, não pode sentir-se desprestigiado ou ofendido em sua autonomia pelo fato de estar sendo cobrado a dar explicações quanto ao pouso final de uma fábula de dinheiro que não lhe pertence. A primeira virtude de legisladores e governantes é a transparência.

A recente novela dos desencontros da Câmara dos Deputados com o ministro Flávio Dino, reagindo a uma cobrança do Supremo Tribunal, trouxe, no enredo, explicações tortuosas, com evidentes sinais de escamoteamento, e, ao mesmo tempo, escancara uma verdade absoluta: as emendas parlamentares, que no Brasil gozam de poder distributivo jamais visto em qualquer parte do mundo, precisam passar por uma reavaliação profunda; moralizadora, sobretudo.

Afora esse grave defeito, preocupa saber que os mais recentes embates sobre o caminho das emendas, sem transparência e sem preservar o dever da rastreabilidade, aprofundaram o risco de se tornarem pivô de grave cisão entre os poderes Legislativo e Judiciário. Nas relações os desentendimentos vão se acumulando. Já por razões outras, antes do recente episódio, ministros e deputados vinham alimentando divergências. Não faria bem às instituições se a convivência entre os poderes evoluísse para animosidades ainda mais sérias.

Na semana passada, neste mesmo espaço, falou-se dos temores em relação à carga dos problemas que aguardam o bornal de Lula, no ano que começa amanhã, aos quais junta-se, agora, por iniciativa do presidente da Câmara, a denúncia de sua corresponsabilidade no trato e na condução das emendas, ônus que também pretende dividir com a Procuradoria Geral da República, sem que faltem estilhaços e respingos sobre o Senado, até agora poupado. O deputado Artur Lira saiu atirando, decidido a não ser o único baleado nessa novela.

Isto posto, não seria demais propor ao presidente Lula que também se esforce para a construção de um clima de harmonia, começando por discutir com o Congresso Nacional um novo modelo de emendas parlamentares em 2025. O que faria bem, em primeiro lugar, ao próprio Executivo, porque é ali que estão os ralos por onde escorrem os 50 bilhões tão aguardados pelos deputados para as festas de fim de ano.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

 

Esses tempos difíceis

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

O apagar das luzes de um ano que se fecha sob o clima de justificadas apreensões, sinaliza, por isso mesmo, que o seguinte, o 2025, vai chegar com a promessa de desafios ainda mais pesados para o presidente Lula, independentemente de suas declarações otimistas, que, muitas vezes, perturbam a realidade dos fatos. Já o dezembro no fim do tempo mostrou que ele e, por extensão, o governo inteiro esbarram em questões importantes. Quase todas na dependência da capacidade de encarar tempestades.

Já durante breve internação hospitalar, ele não escapou de alguns testes, como a disparada do dólar e a sensível desidratação de um conjunto de medidas destinadas a conter custos. Certamente sabe que fica faltando ao governo a intenção de cortar na própria carne, e responder a velhas indagações de economia interna: o que fazer com tantos e caros ministérios?, como enxugar os cartões de crédito que transitam pelos gabinetes?, e o jeito de eliminar benefícios e viagens excessivamente dispendiosos? Falta, portanto, o imediato dever de casa, não sem grandes sacrifícios – sabe-se -, porque logo vão chegar as volumosas contas do ano pré-eleitoral. Na temporada de caça aos votos é inevitável a elasticidade das verbas.

A carga fiscal entra no novo exercício com expectativas acumuladas. E, já agora, o discurso oficial não tem como repetir a arenga de que o Banco Central, suspeito de ser manobrado pelo bolsonarismo, é culpado único pelos pecados e mazelas. Os novos dirigentes da instituição foram indicados pelo presidente Lula, e deixam claro que os juros sobem, e subirão sempre que recomendar a política anti-inflacionária. O BC não abre mão da autonomia, suas decisões serão técnicas, imunes a maiores interferências político-partidárias, goste ou não goste o Palácio do Planalto.

Esse é um problema. Outro, do qual se pode esperar agravamento, por causa da prática sistêmica nos momentos de apertos políticos, é a consolidação do modelo praticado nas relações com o Congresso Nacional, onde transita, com vigor, a moeda-emenda parlamentar, usada para garantir votos em plenário. Nos últimos dias, ela esteve em alta e cotações semelhantes ao dólar especulado… Na verdade, criou-se a rotina de dar e receber; e nisso viciam-se os que vendem e os que compram. Para 2025, nada sugere que seja diferente, mesmo que venha algum suave avanço moralizador, como a rastreabilidade do roteiro das verbas indicadas por deputados e senadores. Vamos assistir à repetição da prática, por mais que isso seja indesejável.

Avizinhando-se o ano eleitoral, quando Lula desejará lançar sua própria sorte nas urnas, para si ou para quem indicar, os apetites serão renovados. Porque os embates eleitorais, não é novidade, em muitos casos prosperam até com despudor, e nessa hora o presidente tem de gozar de boa saúde, porque interesses em conflito, se não sangram, asfixiam. No caso dele, como premissa, tem de começar ajustando o caminho das alianças de esquerda na Câmara, onde conta com insuficientes 130 votos fiéis, obrigando a articulação palaciana a pedir constantes socorros a adversários. A base do governo expõe fragilidades, e chega ao novo ano arranhada. O PT, principal partido governista, mostra-se publicamente hostil à política econômica, condenada por se desviar dos objetivos partidários. Surpreendido com a companheirada no mau humor, em 2024 Lula limitou-se a paternais apelos à unidade partidária, o que não foi bastante.

A direita também padece de inseguranças, mas goza da vantagem de não ser cobrada, porque não é dona do poder em Brasília.

Com desdobramento inevitável para os próximos meses, há que se contabilizar a relação pouco produtiva do governo central com os governadores, a começa pela derrota que impuseram ao projeto nacional da segurança pública, rico em detalhes, preparado pelo ministro Lewandowiski. Com isso, desceu mais um degrau na escada do desprestígio o nosso pobre federalismo. Não bastasse, recentemente os estados reagiram à volta do imposto para danos pessoais causados por veículos em vias terrestres. O projeto, com todos os sinais da influência dos palácios estaduais, sofreu humilhante derrota na Câmara. Nos principais estados, o prestígio do presidente deixa a desejar. Outro desafio a enfrentar.

Pois bem, não bastasse ter de andar por caminhos sinuosos, por ele mesmo criados, o governo brasileiro tem, pela frente, a difícil convivência com o Donald Trump, novo presidente dos Estados Unidos. Lula não gosta dele, mas não poderia reclamar falta de reciprocidade.


(Consta que, diante do acúmulo de problemas, desafios e atropelos a primeira-dama Janja promoveu sessão de candomblé no palácio presidencial, para que os orixás deem jeito no Brasil. Em junho, por alguma dificuldade com o dólar, recorreu a eles, e, piedosamente, teve sucesso. Agora o peso das dificuldades é muito maior. Mas nada que assuste. O ministério tem índios, para chamar os pajés, e evangélicos do missionário RR Soares e do apóstolo Valdomiro, capazes de milagres por atacado e a varejo).

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

 


Os diferentes Brasis

(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

Exatos noventa anos da morte, no Rio de Janeiro, do ministro Pandiá Calógeras ( 1870-1934) talvez devessem ser exumadas, para uma reflexão atualizada, as anotações que deixou sobre as experiências vividas em sua movimentada carreira política. Entre êxitos e derrotas, sobressaiu-se a convicção de que temos dois Brasis. Como lei fundamental, um certo paralelismo entre o que é legal e o factual. Coisas totalmente diferentes, o fato e a lei, já dizia ele, nos tempos do presidente Epitácio. E concluiu, com certo ceticismo, que temos aqui um país desejável; e outro, o Brasil real.

Os dias que correm não parecem muito diferentes daquele antigo país dos começos do século passado, quando, em caso único, ele foi ministro civil no Ministério da Guerra, Há, hoje, coisas que acontecem com assombro. O irreal, não raro, impondo-se; coisas inexplicáveis em si mesmas ou pela maluquice dos que tentam, em vão, explicá-las. Parem o Brasil, que eu quero descer, bradou o cancioneiro popular. Vivesse hoje, Pandiá talvez pedisse o mesmo.

( Esquisitices não faltam. Como o caso do tribunal de Justiça definindo arma de criminoso como instrumento de trabalho; deputados protestando, por terem de mostrar onde aplicam o dinheiro de suas emendas secretas; mulheres de governadores premiadas, compulsoriamente, com cadeiras nos tribunais de contas; STF passando por cima da lei e da decência, para perdoar dívidas monumentais reclamadas pela União; criminosos ferrenhos e reincidentes rapidamente liberados nas benevolentes audiências de custódia; cartões de crédito palacianos garantidos pelo esconderijo; traficantes e milicianos pagando contas familiares de policiais).

Avulta e assusta, igualmente gravíssima, a denúncia de tentativa de golpe abortada, com quatro dezenas de pessoas supostamente envolvidas, alguns militares a quem o governo havia confiado, há poucos dias, a segurança pessoal de estadistas visitantes. Mas o que se tem prometido é que uma apuração conclusiva dos fatos vai ficar para fevereiro… Ora, se as instituições andaram ou andam tão próximo do abalo, coisa seriíssima, por que tanta demora para se dar a explicação definitiva? E como aceitar a agressão à ordem jurídica em que um único ministro, suposta vítima de atentado fatal, ele mesmo diligencia, apura, acusa e antecipa condenação. No Tribunal maior, só o ministro Alexandre fala e age, como se o assunto fosse totalmente desimportante para os demais.

Ao caso, de tão grave, cabe celeridade, porque manter um quadro de grandes dúvidas e responsabilidade difusas, seria acender labaredas em ano pré-eleitoral, o que nada teria de inovador. Pandiá sabia disso.


2 – Numa excitação comum em fim de ano, agentes financeiros criaram a ciranda de especulações em torno dos desdobramentos e consequências políticas da internação hospitalar do presidente da República, e apregoaram, apenas com base em um sangramento na cabeça do paciente, que a economia balança perigosa, vítima do dólar especulativo. Houve recordes em bolsas. Se muitos perderam, outros ganharam, como se vê em qualquer clima de instabilidade. E o real, por lealdade ao presidente, também se enfiou na UTI do Sírio e Libanês, de onde, afinal, ambos saíram, a moeda e o presidente, sem maiores sequelas, e sem que a economia fosse pior do que já estava.

O que o mercado tem de considerar é que não pode ser espécie de maria vai com as outras, acessível a boatos e instabilidades artificiais. Faz bem à economia é preocupar-se com enfermidades mais sérias, não quedas acidentais, dessas que fazem galo na cabeça…

Algo a reclamar contribuição séria dos especialistas da área é nossa persistente dificuldade em melhorar as condições da população desempregada ou subempregada. Imensa multidão alijada do mercado; milhões expulsos do consumo de utilidades e serviços mínimos. Dessa crueldade, sim, deviam cuidar os administradores de dólares oportunistas, que, robustos ou raquíticos, sobem e descem, de carona nos boletins médicos sobre a saúde do presidente.

(De outro lado, na mesma linha de preocupações, é preciso olhar a quem as pesquisas do mercado financeiro querem servir. Muitas vezes, confundidas com boatos em momentos de tensão, vestem-se de biquini: mostram muito, mas não o essencial).

Para reclamar cuidados no tratamento com os números, figuram os recentes demonstrativos sobre a queda do índice de desemprego, que teria chegado a 7,3 milhões, um festejado recorde. Mas o generoso IBGE não conta, não nos diz que 37 milhões de brasileiros vivem debaixo do socorro do Bolsa Família, são desempregados acomodados, o que é uma humilhação para quem doa e quem recebe. Bolsa Família é o endereço desses que também estão sem ocupação. O governo não é empregador, nada mais que um prestador de socorro emergencial.

Estatísticas e especulação com moedas precisam se livrar de números falaciosos e servis, mas revelar as realidades da economia e do mercado.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

 



Se a dama influi

((Wilson Cid, hoje, no "JornaL do Brasil" ))

Correm soltas, em Brasília, especulações sobre próxima reforma ministerial, da qual o presidente não terá como desvencilhar-se, porque já bate à porta a temporada de ano pré-eleitoral, e certos ajustes no time titular são quase uma imposição. Nada de excepcional nisso, pois qualquer governo, se é chegada essa hora, tem mesmo de reorganizar suas bases; o que importa, igualmente, na remoção dos entraves que desgastam e prejudicam a imagem, quando deviam dar brilho. Mas, desta vez, ao lado de várias expectativas, há um movimento, entre setores partidários que podem ser convidados a compor, para que se limite o discutido poder de influir e decidir, que tem sido atribuído à primeira-dama. Esse temor seria herança de ministros de hoje e agentes do segundo e terceiro escalões. Vivem achando que as interferências de dona Janja vão além do razoável. Há queixas. Previamente escaldados, os que vão chegar ou permanecer no primeiro escalão querem evitar que essa influência se cristalize, quando vier a anunciada reforma, inevitavelmente de orientação política.

A começa, considere-se que tais influências não se fazem nem prosperam por si sós. Se ela manda ou desmanda, é porque goza, acolitada, das boas graças do marido. Tem dele bênção e respaldo. Talvez, por isso, a responsabilidade seja mais dele; menos dela, que, por temperamento notório, alegremente impulsivo, vai ocupando espaços sem esbarrar em reservas. Nem sempre é possível contestá-la, quando são coisas mínimas. Por exemplo, ao interpelar o ministro da Agricultura, querendo medidas concretas para conter a exportação criminosa de exemplares da fauna do cerrado e da amazônia. Não apenas ela, mas qualquer cidadão deseja isso. O erro está é no endereçamento da sugestão, porque há outros órgãos competentes para isso.

No aconchego do casal, em noites de privacidade, as conversas sempre prosperam, qualquer primeira-dama tem ideias e sugestões para o marido. É difícil admitir que tome iniciativas que sejam flagrantemente contrárias ao que ele pensa. Mesmo da improbidade dos cartões de crédito o presidente fica sabendo, antes de madame ir ao shopping. Portanto, se constrangimento há, que sejam logo cobrados do presidente, que, até agora, não deu sinais de se incomodar com os descontentes.
Mulheres de estilo diferente outras houve. Reservadas, empenhadas em evitar dissabores políticos, procuraram, com discrição, limitar suas ações ao campo social, mesmo quando o marido era ditador, sem ter de dar maiores satisfações, como dona Darcy Vargas. Dona Sara, dona Ruth, dona Michelle tiveram o mesmo cuidado. Contribuíram com o governo, mas sob limites. E não é pouco o que qualquer uma pode fazer nessa área, num país de miséria persistente, sempre desafiando as estatísticas oficiais.

Normalmente foi o que se viu. Há um caso excepcional de mando feminino, quando, em 1946, a primeira-dama avançou vigorosamente nas decisões do governo. Carmela Leite Dutra, dona Santinha, mulher do manso presidente Eurico Dutra, ela mesma invocou princípios e tradições religiosas do Brasil, para determinar o banimento dos jogos de azar e o fechamento de todos os cassinos de estâncias e pontos turísticos. Poderosa, porque ainda prevalece sua decisão, oito décadas depois.

( Tobías Monteiro, em “História do Império – Primeiro Reinado”, narrando influências femininas em palácio, reserva um capítulo sombrio nas incursões de dona Domitila de Castro e Melo, futura Marquesa de Santos, a irrequieta namorada da Pedro I. Interferia demais, confundia alcova e mesa, prazer com poder, mando com desmando, pudor com despudor. Levou o imperador ao desprestígio e insanáveis dificuldades. Felizmente, tanto assim, nesse nível, a História não se repetiu).

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

 


Nós e o trumpismo

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 

Cresce a expectativa, mundo afora, em torno do que pode mudar na vida de cada país com a ascensão de Donald Trump ao comando da presidência dos Estados Unidos; em suma, o que efetivamente ele conseguirá fazer, entre as muitas inovações prometidas, algumas delas de complexa execução, como a devolução dos imigrantes ilegais aos seus países de origem. Quanto às repercussões internacionais, certamente o Brasil não é diferente no campo das curiosidades, talvez com um detalhe a mais, se os projetos trampistas levarem a sério alguns assessores, desejosos de ver alinhado, para efeito de conduta do Departamento de Estado, o tripé formado pelo Brasil, Cuba e Venezuela, considerando-se que constituem governos claramente esquerdistas, em vigoroso contraste com o que pensa e deseja o novo presidente. O esforço para alinhar o tratamento adversário talvez não produza todos os efeitos por Washington desejados, porque, melhor avaliadas as diferenças, o Brasil tem maior capacidade para comprar e vender; e, no frigir dos ovos, a balança comercial tem peso especial. Sobretudo, se se considerar que aos venezuelanos e cubanos, os outros dois pés, vêm sendo ministrado o remédio amargo das sanções econômicas.

Claro, tudo ainda navega no vasto mar das hipóteses, porque ninguém sabe exatamente o plano de prioridades do presidente Trump nas relações externas, e sua capacidade de enfrentar resistências nessa área. Nem mesmo as multidões que acabam de consagrá-lo nas urnas podem avaliar, com segurança, como ele haverá de enfrentar o mundo, além de suas fronteiras.

Objetivamente, há um pormenor a sugerir que o papel brasileiro na América Latina seja tratado com alguma prioridade, não por causa de nossos belos olhos, mas, sim, porque temos grandeza e liderança natural para dialogar com os amigos russos, chineses e iranianos nos negócios comerciais e estratégicos neste lado do continente. Porque não é assunto para ser tratado apenas sob o viés de idiossincrasias ideológicas.

Não faltam sinalizações. No Brasil, ainda agora, o capital chinês, sócio privilegiado, acaba de assumir o controle de importantes reservas de nióbio, pouco depois de o presidente Xi Jinping receber, num encontro de estadistas que discutiu desafios climáticos, tratamento com distinções bem superiores ao que se destinou ao americano Joe Biden. Percebeu-se aquele cenário de gentilezas que contrariou as tradições. Mas foi um recado de quem pode ser a ponte de diálogo, superação de conflitos e comedimento nas ações.

Certamente que, para preocupar Washington, questão mais sensível, acima dos cuidados com o Brasil, é a presença do Irã nas forças armadas da Venezuela; porque o desembarque dos aiatolás no Hemisfério Sul é algo que tem tudo para incomodar. O governo brasileiro mantém boas graças com Teerã, e isso tanto pode nos fazer bem, como nos fazer mal. Vai depender os humores de Trump e das competências do governo Lula.

Estranho que tais expectativas, acompanhadas de alguma insegurança nas relações, ainda não
tenham mexido com os ânimos do Congresso Nacional para acender o assunto, mesmo se estamos em véspera de importantes mudanças na vida do continente. O Brasil é peça a considerar nos desdobramentos que se seguirão à posse de Trump, por maiores ou menores que sejam eles. Para citar apenas uma das muitas razões com tudo para coçar o interesse parlamentar, num cipoal de tantas dúvidas, figura a possibilidade de o Departamento de Estado deslocar para a Argentina o eixo regional dos grandes negócios e influências, e na condução do diálogo latino-americano, que ainda privilegia o Brasil. Seria perigoso menosprezar o trabalho que o presidente Millei já vem construindo com tal objetivo.