terça-feira, 10 de novembro de 2020

 

Ameaça de retrocesso



((Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil”))


O gabinete político de Bolsonaro haverá de dispor de tempo suficiente para demovê-lo dessa ideia de reintroduzir a prática do voto por cédula impressa, nas eleições gerais. Mostrando-se ansioso, espera o presidente que o Congresso absorva as várias razões que pretende alinhavar, em tempo hábil, para instruir a mensagem, e poder adotar seu modelo preferido já em 2022, quando pretende obter mais quatro anos de mandato. Ao preconizar suposta eficácia da cédula manuseada, e lembrando ter sido ele próprio vítima da contagem eletrônica, garante que em 2018 teria sido eleito já no primeiro turno, não fosse o processo fraudulento; e não tem dúvida em debitá-lo às ações da militância concorrente. No calor da vitória, Bolsonaro e o PSL acabaram descuidando de denunciar formalmente e reclamar providência da Justiça Eleitoral, como também deixaram de apresentar provas convincentes para sustentar a queixa.


O sistema que considera adequado teve repetidas experiências, que afogaram a lisura das eleições que se realizaram antes e durante a década de 50. O presidente certamente não ignora isso. Àquela época, sim, a manipulação do resultado das urnas ocupou um capítulo vergonhoso na crônica política do país. Repetidas vezes, sem exceção; e as fraudes se repetiram, mesmo quando, no governo Café Filho, em 1955, adotou-se a cédula única para substituir aquelas personalizadas, que os candidatos se encarregavam de distribuir pessoalmente. Vã esperança de obstruir o “contágio humano”,segundo a queixa de um ministro do Tribunal de Justiça. No Rio, chegou a tamanha desfaçatez a deturpação na contagem manual dos votos, que o senador Nélson Carneiro lembrava, com ironia, que nesta cidade não bastava vencer a eleição; era preciso ganhar a apuração…


Se realmente aprofundar os argumentos da mensagem que promete encaminhar aos senadores e deputados, o presidente estará elaborando em omissão ao desconsiderar que o Brasil avançou para um dos mais modernos e confiáveis sistema de votação, ainda que, não raro, especialistas levantem e sustentem dúvidas quanto à inviolabilidade dos mapas e cômputos finais. Mas a audácia dos hackers e a criatividade dos bandidos cibernéticos, ainda que em franca prosperidade, não se impõem com suficiência para condenar as urnas do modelo atual ao depósito de ferro velho. Diferentemente, tratando-se de cédulas impressas (não pode negar) qualquer pulha comum, arregimentado por interesses, ajuda a alterar o resultado de uma eleição. Pode ser - quem sabe? - que mude de ideia ao refletir sobre a recente eleição americana, quando todas as suspeitas de fraude prosperaram exatamente nas cédulas. Furioso admirador do colega Trump, que se diz prejudicado nos papéis, talvez dele possa receber conselho para desistir da prometida iniciativa.


Outra inconveniência do retrocesso é a fácil utilização do voto em papel para a deturpação e o desrespeito. Muitos pleitos passados para isso se prestaram, e alguns nem tão distantes no tempo. Viu-se que, condenada a tornar-se veículo do descrédito alcançado pelos políticos, a cédula foi instrumento da extravasão de insatisfações. Um chipanzé e o rinoceronte Cacareco eram “eleitos” com farta votação de deboche. Em 1988, um macaco ganharia milhares de votos para a prefeitura do Rio. E só perdeu para Marcelo Alencar, que se elegeria com 31.5%.


Se levar em conta o risco dos desvios, o presidente terá elementos suficientes para abandonar a intenção que acaba de anunciar. Não desistindo, nada impedirá, em momento oportuno, que o Tribunal Superior Eleitoral se posicione, pois, em seguidas vezes, manifestou confiança no sistema eletrônico de votação, prestes a ser copiado por outros países, embora nem todos estejam seguros quanto à total preservação da vontade do eleitor.





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