terça-feira, 21 de dezembro de 2021


A palavra em crise



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )


Numa época propícia para se tratar de presentes e formulação de bons desejos, não estará delirando quem pretender desejar ao Brasil, como num milagre, a valorização da palavra, notadamente quando figura nas relações políticas, onde, parece, ela perdeu o sentido, não é mais significante. Daí esse interessante fenômeno a que temos assistido todos os dias: os homens públicos falam, e nada acontece; ou o que dizem não repercute, não provoca, por mais grave que seja. Muitas vezes, para deformar, as expressões ganham significado diferente do que deviam significar.

A observação resulta de um caso recente e exemplar. Há poucos dias, o general Augusto Heleno, sobre quem pesa a responsabilidade da segurança institucional, disse ser urgente o presidente da República adotar medidas drásticas em relação ao Supremo Tribunal Federal, antes que seja tarde demais. Referia-se, sem dúvida, ao atual estágio das estremecidas relações entre Executivo e Judiciário.

Medidas drásticas, disse ele, em meio a uma solenidade militar. Mas o que é isso? Que reais dimensões teriam essas medidas?, tratando-se de recomendação partida de um ministro da área de segurança da instituição. Entretanto, mesmo sendo graves, pesadas e com clara insinuação, suas palavras voaram pelo vento. Não aguçaram golpistas de plantão, e o presidente, a quem o discurso chegou alinhavado num misto de advertência e apelo, nada disse. O Tribunal ameaçado fez ouvidos moucos. Ninguém cuidou de interpelar. Tudo ficou por isso mesmo, tal como em setembro, quando brados retumbantes ecoaram em favor do golpe, não suficientemente levado a sério. Eis o tempo de dizer ou desdizer, tanto faz.

O ministro e muitos outros, antes ou depois dele, deixam transparecer que o meio político vive algo que pode ser definido como crise de substância nas palavras, que não mais se potencializam, perderam sentido. Saem aos borbotões, preferencialmente pelos cotovelos, não mais pela boca. Mas é preciso caminhar no sentido de retomar o valor e a seriedade que devem inspirá-las, para que se justifiquem. Tarefa a começar com os políticos, sem necessidade de buscar socorro no léxico do estruturalismo linguístico.

Jogo empatado

Artur Lira, presidente da Câmara, bem que se esforçou, mas ainda não foi desta vez que conseguiu derrubar a resistência, já antiga de trinta anos, à proposta de regularização dos jogos de azar no país. Mesmo com sua posição pessoal, francamente favorável à aprovação, o deputado teve de protelar a retomada das negociações, sem data que o autorize considerar vencidos os obstáculos; um deles, de imediato, começa por exigir quórum de 308 votos do plenário. Tudo muito difícil, mais ainda por se tratar de uma questão que inflama a ojeriza da bancada religiosa.

Não é de hoje que os posicionamentos sobre a matéria convergem para dois pontos: os contrários garantem que seria uma lei capaz de ampliar certa compulsão para o jogo, coisa que facilmente já se identifica com o temperamento brasileiro; e, ao mesmo tempo,  instrumento legal capaz de abrir largo espaço para a lavagem do dinheiro de origem criminosa. São pontos de vista que contrariam os pragmáticos, pois, para estes, os jogos movimentariam R$ 65 bi, e impediriam que 220 mil brasileiros voem, todo ano, para o Exterior, onde se dão bem com legalizadas roletas, diferentes das nacionais, aqui perigosamente clandestinas. Ajudam na evasão dos reais.

Nada de novo, portanto, para embaraçar os planos do deputado Lira e do relator Felipe Carreras. Devem saber eles que interpretações tão antagônicas dificilmente podem se conciliar; pelo contrário, acentuam-se com a decisão do presidente da República de antecipar-se à lei, anunciando que está preparado para vetá-la, se aprovada. O que ele não pode explicar, muito menos corrigir, é a exclusividade com que o governo vem explorando, através da Caixa Econômica, variados jogos, pouco menos perniciosos que aqueles que se deseja proibir. Promovendo fabulosas rendas semanais, por isso mesmo as lotos sempre estarão a salvo da privatização, mas não da contradição.

Pauta para 2022

No entendimento do ministro Luís Barroso, que vai encerrando sua passagem pela presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o feito principal da corte, neste ano, foi a consolidação da urna eletrônica, que considera imune às fraudes. Contudo, não deixa de reconhecer que vai sendo transferido para 2022 um significativo elenco de desafios, cuja importância se acentua exatamente por coincidirem com o ano em que se processarão eleições gerais.

(Sem nominar Bolsonaro como autor dos ataques desferidos contra o sistema eleitoral, embora deixando isso suficientemente claro, de outro lado Barroso aplaude o Congresso, por negar a introdução do voto impresso. Página virada, entende ele).

São velhas questões que não perdem sua importância, e a principal delas, entre outras razões sustentáveis, é o desejo de uma democracia representativa aperfeiçoada. Salta, nesse sentido e de imediato, a avaliação da participação de mulheres e negros na função do voto, considerando-se que constituem, no gênero e na etnia, a parcela majoritária da população brasileira, coisa que os censos vão confirmando em sucessivas pesquisas ou estimativas.

Na linha das discussões transferidas para o próximo ano há que se reservar espaço, igualmente, para o desempenho dos partidos no processo eleitoral. A experiência revela que essas organizações continuam se confundindo nos propósitos, e têm deixado muito a desejar quanto à sua responsabilidade na indicação de programas objetivos a serem apreciados pela sociedade. Na escala dos temas sempre adiados, também convém não ignorar outro desafio que se impõe: conter os partidos, protagonistas, cada vez mais salientes, de campanhas eleitorais caríssimas, sob o patrocínio do dinheiro público que alimenta os sedentos fundões.

Vai em tudo isso um visível descompasso. De um lado, a modernização do sistema de votação, de que se orgulha o TSE; e, de outro, o atraso na representatividade e no desempenho das agremiações políticas. Certamente são problemas que não se esgotarão no ano que vai chegando, mas seria bom impedir que, pelo menos, os debates sobre eles continuassem passando em brancas nuvens. Como vêm passando.

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