terça-feira, 8 de novembro de 2022


Clima de tensões



(( Wilson Cid, hoje, no  "Jornal do Brasil" )) 

É difícil que alguém possa contestar. O país já não tem como suportar a continuidade do clima de campanha eleitoral, que não terminou; na verdade, ela vem se prolongando perigosamente. A sucessão presidencial nega-se a apear do palanque, os contrários não se animam a parar de torcer e vão se mantendo as diversidades, a despeito de a equipe do eleito trabalhar na tentativa de esvaziar resistências, antecipando os trabalhos da transição; a despeito, ainda, de o presidente Bolsonaro não reconhecer os resultados das urnas, alimentado por suspeitas várias de que a votação do dia 30 sucumbiu à fraude. Se assim foi, se assim é, cabe ao TSE andar ligeiro na apuração final e definitiva da grave denúncia, antes de mandar prender quem com ele concorda. Porque, agindo diferentemente, só está contribuindo para exasperar os ânimos já muito quentes. A repercussão internacional dessa situação também pode nos prejudicar a médio prazo. E muito.

Para soprar e incendiar as brasas tem concorrido a intenção do presidente do Tribunal de calar as fontes de comunicação que supõe estarem trabalhando com a desinformação. Mas desconhece que a melhor forma de combater a desinformação, ostensiva ou camuflada, é manter abertos os espaços para o contrário. Desinformação enfrenta-se com informação. Não se conhece solução mais adequada.

Hoje, como nunca, o propósito de conter os veículos de comunicação não tem revelado eficácia; pelo contrário, como a opinião pública sabe que há restrições, qualquer boato prospera como fogo em capim seco, sendo o mais recente o que substituiu as horas de férias por um infarto de que Lula estaria acometido. Até que o fato estivesse devidamente apurado, a imaginação ganhou espaço e ansiedades. Certamente não teria sido assim se, amplamente abertos, os meios de comunicação, sobretudo as redes sociais, operassem livremente, ligeiras na apuração e no desmentido, sem tempo e vagar para especulações e expectativas pessimistas.

Mesmo sem definitiva avaliação de méritos há uma onda de contestações caminhando pelas ruas, duvidando das urnas. A onda é um fato. Azar do fato?

Em todas as ditaduras, das quais trazemos azedas reminiscências, mesmo quando justificadas pelos tribunais, como hoje se aplica, as inverdades e os sem-fundamento parecem mais graciosos para milhões de pessoas. E, ante tais sérias deturpações, as ações do presidente do TSE, com a jactância de superioridade, não têm contribuído para ajudar o país a trilhar o caminho da normalidade.

Lembremo-nos. Na política e nos tribunais o maior perigo está em considerar desprezíveis as opiniões contrárias. E nisso tornam-se mensageiros de véspera dos regimes de exceção.

Fartura de ministérios

Os presidentes da República nunca se entenderam com seus antecessores, e nisso certamente estarão incluídos os futuros, quando se trata de definir o número de ministérios, que geralmente encolhem, se as finanças andam escassas, ou espicham para acomodar os apoiadores mais expressivos. Problema que já se via e preocupava na Velha República, porém agravado mais recentemente.

Lula não dá sinal de poder escapar desse destino, ao anunciar a estrutura de seu governo. A primeira questão que se levanta em relação à ampliação do leque ministerial, como se tem prometido, é o engordamento da máquina da burocracia, exatamente onde prosperam algumas das principais dificuldades e da corrupção na administração federal. Porque crescem os quadros de assessores, assiste-se a feroz disputa por cargos, incham-se os gabinetes, que em geral conflitam quanto a funções, disso resultando prejuízos em áreas essenciais. É o que sugere ocorrer se a Economia (ou Fazenda) desvincula-se do Planejamento, porque, entre todos os setores do governo, são os dois que exigem maior entrosamento, sujeitos a indispensável interdependência. Precisam caminhar em rotas muito íntimas, sem cabimento para caprichos de natureza política. Dúvidas também estão autorizadas quando se sugere separar indústria e comércio das linhas adotadas pela Economia. Nesse campo há antigas experiências a serem consideradas. Já em 1906 João Pinheiro advertia sobre as consequências de isolar aqueles setores produtivos da orientação fazendária.

Cuidado não menor há que se conferir à ideia de organizar outras pastas para determinadas funções específicas. Mesmo que hajam sido boas as intenções, teme-se que isso ocorra, por exemplo, em relação às populações indígenas, imponentemente chamadas de Povos Originários. O titular desse novo ministério, viria, em nome de pretendida autenticidade, das distâncias amazônicas. Alvo das expectativas de seus irmãos de cultura, mas pouco podendo fazer, a não ser permitir ao governo aliviar-se das manifestações de flechas e tacapes na Esplanada. Os índios teriam as queixas jogadas apenas no colo do cacique-ministro; este, coitado, sujeito à imposição de assessores engravatados, jamais acusados de terem pisado numa floresta. O respeito e a preservação das populações indígenas devem ser objeto de atenções de todas as áreas governamentais, não restritas a um campo burocrático da administração, dominado por gente de carreira.

( Dizia Saulo Ramos, que ocupou a Justiça no mandato Sarney: “Observei que no governo federal os servidores do segundo escalão adoram ministro novo, porque fazem dele o que bem entendem. Enganam, dão informações trucadas, assessoram mal. Há honrosas exceções, que são honrosas precisamente por serem exceções”).

O mesmo cuidado pode ser aplicado aos afagos que se destinam à população feminina. Para ela, também se propõe uma pasta exclusiva, fora do controle da Direitos Humanos, onde bem cabem as angústias e as lutas dos dois gêneros, não apenas de um. Observe-se: toda vez que se separa um segmento para lhe garantir campo destacado nas ações políticas, o risco é o isolamento, o indesejável contraste e a disputa com outros setores. Na verdade, criam-se valas nas engrenagens do poder público. Querendo ou não, quando o Executivo organiza uma pasta específica abre-se a porta para a encampação de privilégios que servem a grupos interessados.

Homens do esperado novo governo não ignoram que há nos céus do mundo, sob os quais também nos encontramos, a ameaça de tempo de vacas magérrimas, e delas nem escapam nossos generosos pastos e invernadas. A Europa aperta os cintos, os Estados Unidos em debate com a inflação, os vizinhos da América do Sul mergulhados na indigência. Tudo a recomendar pouca prodigalidade com os cofres do governo.

Pensar a abstenção

A abstenção nos processos eleitorais é fenômeno que só tem preocupado os políticos antes e durante a campanha, quando seus candidatos estão em campo para disputar votos. O problema desliza para o esquecimento, tão logo se define o destino de cada um dos interessados. Não devia ser assim, porque o abstencionismo esconde situações que estão a merecer maior reflexão, antes que chegue nova eleição, com a natural retomada da caça aos votos.

É fato saliente e persistente em todos os pleitos, com números e percentuais sempre muito próximos uns dos outros; sendo que, agora, para comprovar, no primeiro turno presidencial 32.770.982 ficaram ausentes; no segundo, 32.200.558. Em ambos os casos, o equivalente a uma população expressiva, que escapou do momento que tinha todos os indícios de graves definições para os próximos rumos da nação. Ficamos então diante de uma situação que assusta, com perfil adequado para alimentar preocupações, uma das quais é o comprometimento do futuro governo para adotar iniciativas que precisam se escorar em clara sustentação da sociedade. É o problema que vive o Chile, onde o presidente, recentemente eleito, propõe nova constituição, mas se ressente de uma base deformada pela abstenção expressiva.

Por que os ausentes de outubro?, quando era esperado índice ínfimo, considerando-se a temperatura da campanha – a mais quente de todos os tempos – e a polarização entre os principais candidatos, igualmente inédita na crônica política. Diante desse quadro é que precisam mergulhar os cientistas, porque a eles, como primeira questão a excitar, cabe pesquisar o sentimento que leva à ausência de multidões, cara a cara com um momento em que jogam não apenas os seus, como também os interesses das gerações que estão para chegar.

Notou-se agora, como em passado recente, que em alguns segmentos da sociedade e regiões a abstenção tem mapas diferentes, maiores ou menores. Ou, ainda, quando o eleitor é convocado para eleições municipais ou nacionais. Porta-se diferentemente diante delas. Já aí se evidencia uma razão para pesquisar.

Velha discussão, sempre distorcida ou relegada pelos interesses parlamentares, é a adoção do voto facultativo. Talvez a obrigatoriedade de ir à seção eleitoral – a lei não faz distinção entre direito e dever - possa provocar uma forma de protesto da parte de quem acha que deve prevalecer o direito acima do dever. Reage à imposição. Protesta, substituindo o dia de votar pelo descanso ou lazer. O eleitor julga não ser de ferro e, além do mais, prefere dar as costas a indistintos políticos, que tem na conta de ociosos bem remunerados.

Tudo pode ser. Como também – quem sabe? - o eleitor não se assusta com a multa que ameaça sua displicência: nada mais que suaves 10% sobre a base de cálculo, o que vai castigá-lo em modestos R$ 3,50. Severa pena para reparo de um dever cívico vale uma latinha de cerveja. Se não votar, beba, invertendo-se o sentido da prudência que se vê na propaganda de bebidas.

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