terça-feira, 29 de setembro de 2020

 



A Revolução de Outubro


(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))


O 3 de outubro, em tempos passados, seria dia de eleição, depois transferida para o domingo mais próximo. Decretava-se até feriado nacional, para que a população vivesse a motivação cívica das urnas. Não havendo eleição, vale registrar que o próximo sábado marca, ainda que sem maiores atenções, a passagem do 90º aniversário da Revolução de 1930. Nada mais justificasse essa lembrança, bastaria afirmar que nenhum outro fato do século passado a sobrepujou, quanto à importância que teve para os destinos da política nacional, cabendo citar, entre outros desdobramentos, a acidentada interrupção do sistema café com leite, inventado por Campos Sales, na Velha República, para permitir que paulistas e mineiros se alternassem na Presidência da República. Naquele ano seria a vez dos mineiros, e ninguém apostaria contra a vitória de Antônio Carlos. Mas o revezamento foi abortado por Washington Luís, que preferiu ver-se sucedido por outro agente paulista, Júlio Prestes. E pagou caro, condenado a um longo desterro.


O primeiro protesto, que viria aproximar Minas e Rio Grande do Sul, baseou-se nas evidências de fraude eleitoral; mas esse delito, longe de constituir novidade, era tradicional e comum na época. Já se disse, com propriedade, que na Velha República ninguém - absolutamente ninguém - viveu e morreu sem ter praticado esse pecado. E o que era o Brasil rural naquela época? Dos quarenta milhões de habitantes, apenas 1,9 milhão de eleitores, que haviam votado para presidente em março, preocupados em festejar o carnaval, que coincidira com a eleição.

O fim do costume de dar aos presidentes a tarefa de escolhe seus sucessores resultou em um desdobamento positivo. Porque foi pelas armas que ecoou a advertência de que o Brasil ia além de São Paulo e Minas; era uma federação real, onde devesse caber uma participação decisória dos demais estados. Mas não se ignore que, passado quase um século, a federação ainda se retalha e sangra nas desigualdades sociais e na miséria que tolera regiões dramaticamente diferentes.


O mérito de distribuir melhor as sedes do poder não foi, contudo, suficiente para empanar o aspecto negativo que logo se evidenciaria: não se tratava propriamente de um movimento revolucionário, mas substituição de oligarquias. E com o tempo, seguido da deposição de Washington Luís, seriam recolhidas algumas bandeiras progressistas carregadas da Aliança Liberal; essa aliança na qual inspiravam-se os descontentes.


Havia no ideário de 30 a defesa do voto secreto e a participação feminina, compromissos que logo se diluíram com a chegada do golpe e o Estado Novo. Lindolfo Collor, que historiou o movimento, afirmaria que entre os objetivos definidos estava a “não modificação radical das instituições”. Portanto, ninguém pretendeu a ruptura das instituições, nem alterar as linhas da política econômica, 70% dependente do café; muito menos desejava-se criar choques entre classes sociais.


Cinco meses antes daquele outubro histórico tem novos traços o perfil do gaúcho Getúlio Vargas, que, temeroso, havia entrado discretamente na conspiração. Hesitava quanto ao recurso do conflito armado ao assinar manifesto denunciando fraude eleitoral, mas sugerindo que “as necessárias modificações dos nossos hábitos poderiam se realizar dentro da ordem e do regime”. Nesse apelo à prudência, o futuro ditador, que fora ministro da Fazenda no governo que desejou derrubar, acabou sendo mais “mineiro” que Antônio Carlos, porque para este “devemos fazer logo a revolução antes que o povo a faça”.


Durante longo tempo explorou-se o assassínio de João Pessoa, presidente da Paraíba, como brado da intolerância e o apelo à reação armada, aclamado no Brasil inteiro como mártir da democracia e da legalidade. Não se tratou, contudo, de crime político. Está provado. Quem o matou, em ambiente público, foi João Dantas, cuja vida familiar havia sido ultrajada por um jornal do presidente. Mas esta passou apenas como a verdade do fato. Era preciso aproveitar o primeiro sangue, sem importar a razão pela qual havia sido derramado.

Muitos fatos e circunstâncias permanecem susceptíveis de melhores análises sobre o 1930; tanto o antes como o depois dele. Mas aquela revolução, mesmo assim impropriamente chamada, haveria de cumprir o destino de todas as sublevações desse tipo. A começar por sua vocação antropofágica, isto é, uns líderes devorando outros, como Getúlio, que podou pretensões de Antônio Carlos. Historiadores não se surpreendem com esses desvios, porque revoluções não cumprem os planos iniciais. O que levou Trotsky a chamá-las de “inspirações loucas da História”.


De fato, há muito que aprofundar na análise dos temas que cercam aquele movimento nonagésimo. Por exemplo, o papel do Rio de Janeiro, que não foi modesto, mas decisivo nas articulações de gabinete e na discussão de estratégias. Cabe lembrar que, muito antes de as tropas irem à rua, os compromissos políticos da Aliança Liberal, que levariam à Revolução de 30, constavam de documento assinado aqui por José Bonifácio Andrada e Silva e João Neves da Fontoura, reunidos no apartamento 809 do Hotel Glória. E o primeiro dinheiro para a compra do armamento dos gaúchos e mineiros veio de um empréstimo obtido junto à Light, presidida por Paul Mckee. Nunca se prestou conta exata do gasto desse dinheiro. Mas isso é uma outra história.



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