terça-feira, 15 de setembro de 2020

 

O Brasil reinventado


((Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))


Garantem os mais animados, ante a capacidade de o Brasil sacudir a poeira de seus defeitos, que realmente ele tem jeito; mesmo com tanta gente a trabalhar para que o dia a dia continue atrelado aos vícios e à corrupção, que são, a igual tempo, a tragédia das maiorias e o caminho pelos quais vão se construindo fortunas inconfessáveis. Se é verdade que tem jeito (não custa acreditar), cabe indagar como deve estar a tumultuada cabeça de historiadores, filósofos, sociólogos, cientistas políticos e de quantos possam ser chamados a desvendar caminhos e acender faróis que alumiem os rumos de um Brasil novo, rejuvenescido; descobrir luzes para uma nação que seja capaz de trazer melhores esperanças para as gerações que estão por vir.


Certamente estamos diante de uma indagação incômoda, para mexer com a imaginação daqueles estudiosos e de quem se preocupa com o futuro, pois já nem se alimentam esperanças para estes nossos dias que correm, porque, a vida registrando tantos tropeços acumulados, o brasileiro se compraz no aguardo de tempos melhores para os filhos e netos. Para quem é de agora, o trem da História parece ter passado, e a sociedade vai marchando desanimada quanto ao imediato num mundo de estrepolias, num tempo de grandes crimes, que se dão ao luxo de isentar os poderosos. Assim, vai se tornando produto escasso a expectativa de que coisas melhores possam chegar logo, e com isso somos condenados a viver o clima pernicioso do baixo astral, que afeta até mesmo os nacionalistas mais fervorosos. Entre estes, também cada vez mais desanimados, há os que acham suficiente estar contra ou a favor do governo, quando as razões da crise vão bem além disso.


Ao se voltarem para as massas desesperançosas ou desiludidas, percebe-se que as vozes oficiais não tratam dos pecados do poder. Preferem aproveitar eventualidades e momentos cívicos, como no passado dia Sete, e apelam para o patriotismo. Antigo apelo, que acaba caindo no vazio, porque, como contestou o escritor Luís Veríssimo, não vai se pretender que o sujeito seja patriota nessa pátria dos outros, que tira de muitos para enriquecer poucos; pátria que tem sido democrática na distribuição de pobrezas e oligárquica nos favores e benesses. Assim não dá.


Quando os três poderes se somam num colossal esforço para delegar as culpas que são suas, a consciência nacional parece desembarcar do resto de esperanças. Porque os conflitos e vaidades que frutificam nas casas legislativas e nos gabinetes do governo já se estenderam, como fogo amazônico, pelos corredores dos tribunais; e com tamanho vigor, que juízes e ministros, não satisfeitos pelo que acumulam, organizam certos expedientes, que são capas protetoras para filhos e afilhados, para que também se locupletem. Em maré alta, a onda perniciosa vai mais longe, e se vale do recato de mulheres, algumas vezes expostas à desmoralização por se prestarem ao papel de depositárias de dinheiros de procedência suspeita. Nem elas têm sido poupadas.


Ora, se os poderes despencaram nesse abismo, então a quem recorrer? Onde a sociedade haverá de buscar a proteção restauradora? Boa solução seria fechar o país para balanço geral, jogar fora os resíduos apodrecidos, nocivos e imprestáveis.


É voz sensata, embora não geral, que temos de recomeçar o Brasil. Fundar um novo Brasil, com as necessárias escusas aos portugueses ( se a História permitir ), porque meio milênio depois, notamos que nem bastou a aventura das naus cabralinas. Lamentável a gente não saber por onde andam as crônicas inéditas e cáusticas de Rangel Coelho, que escreveu longamente sobre essa redescoberta, mas é fácil recordar que, para ele, o remédio seria exatamente esse. O Brasil reinventado. Isso mesmo. Começar tudo outra vez, a começar pelo Rio de Janeiro, preservada a obra com que a natureza o contemplou. Dispensar os navegadores, fechar os portos que João VI abriu e os mares em que Castro Alves navegou para denunciar a barbárie do tráfico negro. Parar o tempo e recomeçar a História. Passar a borracha nos conflitos e nos acidentes que feriram as instituições, varrer da memória as sete dissoluções do Congresso, os seis governos provisórios, a mágoa dos presidentes depostos ou impedidos, as renúncias, as cinco deposições de chefes de governo, as 19 rebeliões militares. E, o pior, a vergonha de oito ditaduras que carregamos. Enfim, limpar o passado e o presente de todos os entulhos, se for possível, cuidando-se de preservar o que ficou de bom e do bem. Porque, se nem tudo decepcionou, é preciso que as coisas positivas possam ser lembradas como exemplo.


Talvez nossos erros tenham, de fato, começado e envelhecido a partir de um passado remoto. Porque fatores vários sugerem que o mal original do Brasil foi o fato de ser descoberto, fruto de acaso ou de curiosidade, que ainda hoje servem à aventura e aos abusos. Melhor então se fosse fundado, como a obra dos quakers, que, como os portugueses, vieram do Velho Mundo, com a diferença de terem chegado com a proposta de organizar uma sociedade.



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