terça-feira, 29 de dezembro de 2020

 


Entre o real e a esperança


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))


Na ânsia de esquecer coisas e fatos desagradáveis, que tropeçaram a vida brasileira neste quase defunto 2020, muitas pessoas, parece, alimentam a boa vontade de acha que basta virar a último dia do ano e rasgar o calendário antigo, para que tudo se renove; e estaremos desvencilhados das maldades, que não foram poucas. Bastaria demitir o dezembro funesto pelo janeiro promissor. Mas não é bem assim. Há males que perseveram - lamentável reconhecer – e ganham musculatura mais que suficiente para se projetarem, com vigor, sobre o nascente 2021. O que fazer?


Na contramão do melhor dos otimismos, o que se tem, no cenário, é que alguns dos grandes males vividos avançam sobre o novo ano, a começar por um que, bem considerado, pode ser padrasto cruel de algumas entre as muitas infelicidades que atormentam o país. Falo sobre certo desencanto nacional em relação aos três poderes constituídos - Executivo, Legislativo, Judiciário – depois que se rebelaram contra o princípio elementar da lição de Montesquieu, porque aqui, sendo independentes, os poderes deixaram de ser harmoniosos. Aquela pretendida independência passou a significar um mandando mais que os outros dois; nem se cuidou da harmonia, porque cada qual se sente no direito de invadir competências que não lhe cabem. Na desordem institucionalizada, algumas vezes nem se cuidou de preservar regras mínimas de respeito mútuo. Já nem se diria de reverência educada.


Esse desencontro, seguidas vezes observado na vida pública, haveria de alcançar o ápice, ainda nestas horas recentes, com o conflito de interpretação das responsabilidades ante a tragédia da Covid 19, que vai entrar, soberana e desafiadora, no janeiro indefeso. É indisfarçável: com 200 mil mortes, choradas pelo Brasil a fora, os titulares dos poderes viveram empenhados em atribuir a outros o carregamento de culpas que, pesadas com algum critério, sem paixões, na verdade a todos pertencem, mesmo que em cotas diferentes. Contrições cabem aos três palácios, no legislar, no julgar ou no executar medidas adequadas e oportunas para que o mal, mesmo não podendo ser vencido, fosse, ao menos, minimizado.


O país se sente, portanto, no direito de viver o desassossego ao dar de frente com os homens que administram sua caminhada, sem ajudá-lo a não padecer tanto. Em acréscimo perfeitamente dispensável, são até capazes de gerar idiossincrasias nas relações institucionais.


Nada mais temerário, no alvorecer do ano que vai chegar repleto de desafios, já sob a despedida de um dezembro entristecido e desmotivado para comemorações. E cercado de dúvidas, às quais cabe acrescentar divergências técnicas e políticas, entre pessoas e instituições científicas, sobre a real eficácia de uma vacina, que os brasileiros erigiram como principal expectativa para as primeiras semanas de 2021. Por sobre isso, insistem incertezas sobre outras condutas da política preventiva, onde na imensa proveta de dúvidas o presidente Bolsonaro tem contribuído, ora com atitudes negacionistas, ora estimulando expectativas alimentadas pela admiração que tem por receituários não reconhecidos nos setores responsáveis.


Em meio a um pandemônio de opiniões e atos desencontrados, o pobre brasileiro já não sabe mais a quem confiar suas hesitações. O ministro indica um rumo, o presidente vai em sentido contrário; os governadores se desentendem, quando seria fundamental que se entendessem, mas estão assentados em cima de questões políticas; os produtores de vacina disputa. Tomá-la ou não tomá-la?, eis a questão shakespeariana que a pandemia, em acréscimo, quer nos empurrar no ano que chega.


Visto sob outro vértice, 2021 ainda acena com os respingos a que a nação estará sujeita, no acirramento de disputas políticas; porque já agora, sem mais tardar, abre-se a temporada das articulações para a sucessão presidencial. Por que preocupar-se logo com isso? Porque, aproximando-se a disputa, os interesses, nem sempre republicanos, contemplados ou não, muitas vezes colocam-se à revelia das questões nacionais, que passam a ceder lugar e prioridades às acomodações no processo eleitoral. Sejam contra ou a favor do governo; tenha ele boas ou a intenções. As decisões passam, então, a ser focadas com binóculo voltado para 2022, mas estrábico quanto às aflições do dia a dia da população.


Uma ressalva, contudo, permite abrir espaço a alguma animação, para que as coisas, ditas de jeito tenebroso, não levem a uma descrença total, que acaba sendo tão nefasta como os próprios problemas. Se não seria honesto escamotear dificuldades visíveis e os restritos caminhos para encontrar soluções; se a quadra em que vivemos é desafiadora, e é realmente, nem por isso temos de desconsiderar a esperança pelo melhor, até porque ela é inerente à natureza humana. Por mais que esse sentimento saia combalido no epílogo de 2020, ele existe e persiste, meio misterioso, o que, no passado, levou Otto Lara Resende a defini-lo como “estranho sentimento esse, que morde, em silêncio, os corações distraídos”.

Assim seja.




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