terça-feira, 20 de dezembro de 2022




Cenário de dissabores inevitáveis



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))


Avanços e retrocessos que marcaram, na semana passada, os debates sobre o Orçamento Secreto e a PEC da Transição (ou da gastança) foram temas que tomaram longo tempo do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, não conseguiram esclarecer o suficiente, mas serviram, ao menos, para deixar claro que o governo Lula terá muitos dissabores e tensões; esperança e herdeiro dos conflitos de interesses políticos, que procuram se acomodar para os novos tempos. Interesses chegando com grande animação. E, nesse painel desafiador, ele deve sentir que os amigos são exatamente os que provocam impasses mais sérios. Dificilmente conseguirá escapar de ciladas. Viu-se, no calor das discussões, com todas as evidências, muitos grupos lutando para embarcar, o que faz pensar que o governo iniciante nem precisou esperar a inauguração para sentir as dificuldades que vão se armando no seu caminho.

A primeira entre as evidências, que logo se revelou, é que vai lhe custar alto preço a convivência com o Congresso, em particular com a Câmara os Deputados, casa que o novo presidente já frequentou, embora sem assiduidade, mas com visitas bastantes para saber que ali atuam trezentos picaretas, segundo sua expressão. Contudo, hoje, como antes, o apoio parlamentar de que vai precisar tem mão dupla: na mesma linha em que se dá é preciso que venha o compensatório. As casas legislativas, como sabem todos os governantes que delas dependeram, são máquinas que precisam ser azeitadas. Não funcionam a seco.

2 - Nem faltaram declarações polêmicas, algo dispensável, quando é preciso acalmar áreas que preferem manter reservas em relação a certos nomes convocados para compor a futura administração. Pois o futuro ministro da Economia não se ruborizou ao anunciar receita meio salomônica com que pretende marcar sua convivência com as finanças. Para ele, o orçamento da União deve ser para os pobres, e, para os ricos, o imposto de renda, que, como se sabe, é no Brasil, um tirano perverso. A preocupação social do doutor Haddad ainda não mostrou o que pensa da incidência do IR sobre assalariados, que sofrem deduções já antecipadas.

O novo modelo, que certamente deseja ver implantado, vai causar espécie se a aplicação do imposto, no Brasil, continuar servindo para esbanjamentos ou cotejar obras de governantes amigos no Exterior. Fica o ministro devendo explicação sobre vultosos financiamentos de projetos em Cuba, Venezuela e países africanos, como fizeram os governos do PT, partido onde ele esteve e está entre as primeiras expressões. E que não baste, na sua gestão ministerial, interromper o ultraje desses empréstimos. O doutor Haddad andará bem se cobrar os juros que nos são devidos, e que nunca foram pagos. Nem admita o deboche dos cubanos, que nos deram charutos como garantia.

Nossa política tributária, a segunda mais gulosa do mundo, seria respeitada se os recursos dela decorrentes tivessem aplicação eficiente. Ou, pelo menos honesta.

3 - Passando, a semana também deixou atrás de si um pressentimento negativo causado pela disposição de negociar, logo e objetivamente, as condições de apoio político ao governo. Ficou demonstrado, quando o presidente voou para Brasília, a fim de tentar remover, a qualquer custo, as cobranças, principalmente o apoio à PEC da Transição. Por que tanta exigência para a aprovação? Fácil explicar, porque em relação a ela pairam inúmeras e justificadas suspeitas. Trata-se realmente de uma preocupação com a ajuda aos pobres? Ou vai financiar outros gastos de começo de governo? O que não deixa dúvida é que o empenho pessoal de Lula faz o produto da tramitação subir de preço. Por outro lado, toleradas as concessões perdulárias, ficam abertas as portas para novas cobranças, que certamente não tardarão.

Em última análise, o que os políticos estão desafiando é a capacidade do presidente em abrir numerosos cargos, no primeiro e segundo escalões, onde querem se abrigar os aliados; pretensão que não falta entre alguns antigos bolsonaristas, rápidos no pragmatismo para se dedicar ao governo a viger. Pessoas prestigiadas nos tempos de Bolsonaro vão chegando, talvez com o pudor que recomenda não aparecer ostensivamente.

Novos e antigos simpatizantes formam a multidão que marcha rumo ao Palácio do Planalto. A Lula não resta alternativa, começando por esquartejar o ministério, talvez com 32 pedaços, tornando-o o mais caro do mundo ocidental, apenas com a virtude de não frustrar os apoiadores mediatos e imediatos.

Na verdade, como advertem velhas experiências, os cargos dos dois primeiros escalões executivos são a ponte por onde transitam facilidades no diálogo com as bases parlamentares e com os grupos que as dominam. O presidente sabe como isso funciona; tanto que, ao contrário de certos adversários, teve a prudência de não prometer romper esse vício terrível, que, de tão veterano, veio se tornando uma espécie de patrono no bem viver entre os poderes.

Numerosas pretensões, colocadas como condicionantes, continuavam, ontem, a barrar a chamada PEC da Transição. Ficou o recado claro para o governo que vai começar. Ou dá ou desce. Não foi outra coisa o que se viu nas ações do eficiente condotiero Artur Lira. Lula não tem como escapar dessa gente, como Bolsonaro não escapou.

Esses fatos, mesmo que confusamente alinhados, oferecem razão para que a nação deplore práticas políticas açodadas e nada republicanas. Justificam-se os temores, porque, a menos que o governo mostre uma forma de se blindar, o 2023 – e talvez os anos seguintes – estará sujeito a tensões e graves tropeços causados por setores inconformados. Outro motivo capaz de gerar inquietações é que, em comparação com transições anteriores, a atual supera-se pela volúpia e intransigência dos amigos, muitos deles com assanhamento nunca visto.

Há um componentpara escurecer mais um pouco. Gente de casa, de sala e cozinha, não vem se revelando menos sedenta, mas pouco preocupada com os deveres de solidariedade. Na semana passada, eram conhecidas dificuldades para conciliar clamores na escolha da ministra da Cultura, onde o PT parece ter entrada em crise antropofágica: na mesma tribo, uns comendo os outros. Em relação ao partido, não se pode desconhecer seu direito de ocupar posições estratégicas, mas é preciso que compreenda que seu presidente, se quiser governar com um mínimo de tranquilidade, terá de convocar e conviver com amplas forças de sustentação, por mais que isso possa custar concessões. Os petistas devem ter sempre em mente que não foram construtores únicos de uma vitória apertada, pouco superior a 1%. Número tão modesto sugere descalçar o sapato alto e estender as mãos.

4 - Pois nem o Senado Federal se sentiu à vontade para encarar a audácia de promover mudanças na Lei das Estatais, onde qualquer olfato sente o cheiro das conveniências, e a preocupação em escancarar as portas das empresas, por onde se pretende a entrada de indicados políticos. Se os senadores (até seu presidente), acham que o abuso avança nos limites, é porque não apenas eles, mas a sociedade também se escandalizaprincipalmente sabendo que a mexida abre, aos políticos da adesão, cerca de 580 cargos, cuja importância estratégica impõe que o provimento se faça com técnicos qualificados.

pretendido retoque, faltando tempo e coragem para aplicá-lo ainda neste ano quase findo, fica para 2023. O novo presidente terá de se contorcer. Ou pressiona o Congresso para se solidarizar no pretendido atentado contra as estatais, ou trate de acalmar os apoiadores que desejam ocupar cadeiras que dão muita projeção e boa remuneração. Os candidatos são muitos, mas, contrariando o que desejavam, não dá para ser presente de Natal.


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