terça-feira, 23 de maio de 2023

 Um clima de tensões


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")

Verdade que dificilmente encontra quem possa contestá-la: não há nação que seja capaz de conviver, infinitamente, com o clima como esse que hoje suportamos no Brasil, sob tensões, ameaças, vinganças, suspeitas e uma imensa incerteza sobre as coisas que estão por vir. O que nos levou a essa terrível experiência?, que tem o condão de fazer mal a todos, indistintamente. Espalha maldades sobre quem a provoca e sobre divergentes, abrindo-se campanhas que pretendem

ferir ou lesar. É impossível continuar assim, com os fatos e os incendiários empenhados em ver o circo pegar fogo.

O Brasil precisa respirar e andar, com as coisas e seus atores nos seus devidos lugares. Nesse sentido, como primeiro passo, cabe esperar que o Judiciário abra mão do protagonismo e no desmedido avanço no campo da ordem política. Quanto ao governo, esperar que olhe mais para o presente e o futuro; não se deixar escravizar por ressentimentos do passado.

É no campo político, tomando-se por base as últimas semanas, que se constata o principal fator de agitação. O ex-presidente Bolsonaro, falando ou calado, por si ou por colaboradores, ganhou estrelato no centro das tensões, porque Lula o elegeu como uma espécie de assombração; e gosta de ser atormentado por ela. Não esquece Bolsonaro, não permite que o principal adversário saia de cena. Interessante a fixação lulista, com algum conteúdo masoquista. O presidente não quer esquecer quem mais lhe aborrece, o que já garante ao antecessor a performance do ex que mais perturbou o sucessor.

Junta-se à rede de intranquilidade o fato de o governo não conseguir manter unidade confiável em sua base parlamentar, por mais que adoce a boca de deputados e senadores. Mais ainda agora, quando eles se sentem ameaçados, podendo perder o mandato por razões nem sempre suficientes. Há uma lista que Deltran encabeçou, mas são justificados os temores de que não seja o único; podem vir outros que arranhem boas relações dos poderes Executivo e Judiciário. Sob os temores quanto à sorte dos mandatos, congressistas há que perguntam se vale a pena investir no Planalto. É outro problema para inquietar o presidente, porque a lealdade política tem diferentes preços; e ele sabe muito bem disso.

Nem faltam, para perturbar, os desassossegos nas relações da intimidade do poder. E costumam ser mais desafiadores, como se deu, na semana passada, quando entraram em conflito aberto Petrobras e Ministério do Meio Ambiente, totalmente divergentes quanto a um projeto de perfuração em solo preservado. São vários, contudo, os desencontros no primeiro escalão, e o presidente deve se perguntar, toda hora, sobre a maneira de aparar arestas, antes que continuem corroendo o clima interno; porque não existe maior risco para o governo, quando se debilita a convivência na mais alta assessoria. Lula precisa perceber logo, antes que seja tarde, que no Planalto figuram vários casos que fazem lembrar a sabedoria de antigo sultão persa, que vivia o mesmo problema em seu palácio: é preciso ter muito cuidado com os ajudantes que não sabem; os que não sabem que não sabem; os que têm certeza que sabem, e estes são os mais perigosos. O sultão resolvia o problema mandando enforcar.

Azar das minorias

Com razoável antecedência, já é possível admitir a repetição de defeito grave para o processo eleitoral de 2024, graças a uma velha conhecida nossa, a impunidade. Outra coisa não se pode imaginar depois que a Câmara dos Deputados admite anistiar os partidos que, em pleito anterior, descumpriram as cotas destinadas a mulheres e negros nas chapas de candidatos, historicamente excluídos do processo.

Uma anistia contraproducente, porque estimula o descumprimento de dispositivos legais, desses não escapando os que foram recentemente definidos pelo Congresso.

De tão absurda, a decisão poderia tolerar um toque de ironia. Vagarosa muitas vezes, omissa em outras, a Câmara dos Deputados - reconheça-se – também tem seus momentos de eficiência. Ainda agora, no episódio dos partidos irregulares, consegue ombrear, na mesma linha de agressão à lei, governistas e oposicionistas, remove as divergências, passa por cima da seriedade e admite, no gesto criminoso, que a formação de chapas de candidatos é tarefa que cabe apenas aos interesses dos caciques desses pobres partidos de fantasia.

É a terceira vez, sucessivamente, que se comete o crime eleitoral, para logo depois ser amaciado coma anistia. Daí o estímulo para que a prática se renove no próximo ano. Mulheres e negros defenestrados do direito de concorrer, enquanto os parlamentares continuarão pregado igualdade de gênero e etnias, menos nas eleições.

É uma situação que se soma a outros acidentes para justificar o descrédito, cada vez mais exposto, que a classe política vem conquistando junto à opinião pública. Por que não?, se o mesmo poder que cria a lei que aplica a pena é capaz de rasgá-la, tornar a criá-la, para de novo revogá-la. Morde e assopra. Castiga e perdoa, dependendo das conveniências; e nisso empenham-se os homens que são a favor ou contra o governo. Unanimidade na indecência.

Resulta que o TSE precisa estudar outra forma de democratizar a organização das chapas de candidatos, para que minorias não continuem vítimas de embuste. Outros países viveram o mesmo problema, e se safaram dele. Em alguns, como no Chile, as garantias não estão nas cotas, mas nas vagas legislativas a serem preenchidas. É preciso pensar.

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