terça-feira, 24 de outubro de 2023

 


Um Manifesto de 80 anos



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

O dia tem algum simbolismo, merece registro e reflexão. De volta a 24 de outubro de 1943, 80 anos passados. As ditaduras - e a de Vargas não seria diferente – começam a ruir por força de um conjunto de fatores, mas foi naquele dia que o poder discricionário balançou, com o Manifesto dos Mineiros, documento que surgia em apenas um estado, mas dirigido a todos os brasileiros com palavras “serenas, sóbrias e claras”, para pedir a volta do país às liberdades, num momento em que começava a se espalhar pela Europa o anseio de democracia, depois de uma guerra mundial que já vivia seus estertores. Manifestações daquele tipo certamente não teriam êxito hoje, porque os tempos são outros e as lideranças difusas.

Mas o que queriam os mineiros de então?, aqueles 92 intelectuais, empresários, profissionais liberais, em grande número bacharéis. Muitos eram altos funcionários públicos e de bancos, que em poucas horas, depois da publicação, perderam o emprego, sob uma onda de pressões que saía dos gabinetes do Palácio do Catete, embora Getúlio se esforçasse para esvaziar a importância do documento. “Prurido demagógico de leguleios em férias”, comentou com sarcasmo. Mas a reação da Presidência da República foi diferente e imediata, para confirmar o que previra Mílton Campos: pode ser que o Manifesto não faça ondas, mas certamente haverá vagas, aludindo a demissões em massa... Odilon Braga, demitido do Banco do Brasil e da Ultragás; Daniel de Carvalho ficou sem a diretoria da Siderúrgica Nacional, Bernardes Filho demitido da Equitativa, Mílton Campos afastado do serviço jurídico da Caixa Econômica. Todos, sem exceção, sofreram retaliações, mas Mello Franco, que o governo considerou, sem errar, o inspirador intelectual, perdeu emprego no Banco Alemão Transatlântico, no Banco Mercantil de São Paulo, no Banco Brasileiro de Crédito, e deixou de ser conselheiro do Cimento Portland e do Frigorífico Iguaçu.

O historiador Paulino de Oliveira, que descobriu os originais na Fazenda Santa Lúcia, da família do ex-ministro Odilon Braga, e os conservou, observa que o documento também contou com inequívoca simpatia de militares contrários a Getúlio, embora enrustidos. O que o marechal Eurico Dutra confirmaria tempos depois. A propósito de Odilon: sendo ministro da Agricultura, foi o único do Gabinete de Vargas que se recusou a assinar a Carta do Estado Novo.

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O Manifesto protestava diante da hipertrofia do poder Executivo, porque “não é bastante que figurem em diplomas constitucionais as franquias e direitos dos cidadãos. O essencial é que sejam assegurados e que possam ser exercidos”. Uma abordagem ao tempo de censura lembra também que “um povo reduzido ao silêncio e privado da faculdade de pensar e de opinar é um organismo corroído, incapaz de assumir as imensas responsabilidades decorrentes da participação num conflito de proporções quase telúricas, como o que desabou sobre a humanidade”. Vencidos os sufocos da guerra mundial, se o mundo seria diferente, o Brasil devia seguir a mesma trilha. Nesse sentido, cabe lembrar que o país pertence ao mundo ocidental, “e dele não poderá se isolar nunca”. Queixosos da distância que separava o Brasil de democracias prestes a se restabelecerem, os manifestantes lembram que “se lutamos contra o fascismo, ao lado das Nações Unidas, para que a liberdade e a democracia sejam restituídas a todos os povos, certamente não pedimos demais reclamando para nós mesmos os direitos e as garantias que as caracterizam”.

Mas queriam os mineiros alguma coisa além das franquias, do direito ao voto livre e a proteção do habeas-corpus, porque “nossas aspirações fundamentam-se no estabelecimento de garantias constitucionais, que se traduzem em efetiva segurança econômica e bem-estar para todos os brasileiros”, sobretudo para as jovens gerações que logo apareceriam. Dúvidas também foram denunciadas no campo eleitoral, autorizadas pelo “ludibrio da opinião pública, com a opressão de estados de sítio de duvidosa legitimidade e de excessiva duração”.

Oito décadas passadas, advertia-se que a reorganização político-institucional desejada devia inspirar-se na Carta do Atlântico. “O povo a que alude esse famoso documento, que orienta a comunidade das Nações Unidas, só pode ser o que se manifesta pelo voto espontâneo e livre”.

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Eram 2.400 palavras em 50 mil cópias, impressas em oficina clandestina de Barbacena, na praça principal, junto ao Bazar Moderno, de Dari Bernardo, que, convidado por Bonifácio Andrada, acabou assumindo os riscos.

Chegar ao texto final foi um longo e discutido percurso, estranhável que a polícia varguista não descobrisse a conspiração a tempo de interceptá-la. Até porque o texto passava a muitas mãos, à procura sugestões, acréscimos e restrições. O último e definitivo teve a revisão de Odilon Braga e Virgílio Mello Franco, sob protesto de Tristão da Cunha, que queria um texto mais vibrante e incisivo, tal como também desejou Dario de Almeida Magalhães. Mas, ainda que alguns identificassem a suavidade comum do maneirismo, havia críticas diretas e objetivas ao ditador, “em quem se concentrou a hipertrofia do poder Executivo, a incidência da chefia suprema do governo e da política nas mãos de um só homem, sempre desejoso de perpetuar-se”.

Virgílio, em sua casa, diante de amigos, foi quem leu o Manifesto já impresso, e que, nas noites seguintes, seria secretamente enfiado por baixo das portas das casas e lojas das madrugadas de Belo Horizonte, Juiz de Fora, Rio de Janeiro e S.Paulo.

Um fato curioso, bem à moda da política mineira, é narrado por Paulo Pinheiro Chagas:

“Decidido que as assinaturas seriam dadas por ordem alfabética, o primeiro nome devia ser Achiles Maia, um capitalista e homem de negócios em Barbacena, o que desqualificaria o caráter político do documento. Alguém, então, sugeriu que a assinatura dele fosse gravada como Aquíles, sem o “c”, mas com “q”. Assim, o primeiro nome pôde ser de Adauto Lúcio Cardoso, seguido de Adolfo Bergamini, Afonso Arinos, Afonso Pena Júnior, Alaor Prata, Alberto Deodato. Depois, entre os mais conhecidos, Álvaro Pimentel, Artur Bernardes, Bernardes Filho, Bilac Pinto, Bueno Brandão, Daniel de Carvalho, Dario de Almeida Magalhães, Geraldo Resende, João Franzen de Lima, Magalhães Pinto, Nélson Sena, Odilon Braga, Pinheiro Chagas, Pedro Aleixo, Pedro Nava, Tristão da Cunha e Virgílio de Mello Franco.

(Mas houve também os que, consultados, preferiram não assinar, pois acharam inconveniente provocar o governo naquele momento. O caso de Venceslau Brás, Antônio Carlos e Bias Fortes. Como também os que subscreveram dias depois, como José Bonifácio, Layr Tostes, João Resende Costa e Dilermando Cruz).

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Passadas oito décadas desde que se divulgou o Manifesto dos Mineiros, há historiadores que desconhecem nele qualquer utilidade para os dias atuais, porque os tempos de Vargas e o pós-guerra eram diferentes, embora reconheçam que tenha contribuído, efetivamente, para apressar o fim de um governo que trazia acumuladas ilegitimidades. Há outro detalhe, que é real e diferencia políticos de hoje, se comparados com os dos anos 40: nos momentos graves, os antigos revelavam desapego aos cargos públicos. Corriam o risco de perdê-los, como perderam, em nome de uma causa. Mas iam em frente.

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