terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

 


O que dizem as pesquisas

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil"))

A melhor conduta em relação à profusão de pesquisas sobre os rumos da sucessão presidencial de 2026 é, sobretudo, tomar em conta que elas refletem pouco mais que o ânimo da sociedade sobre problemas da atualidade. Dezoito meses antes da eleição, não seria prudente achar que estão traçando perfis definitivos de vencedor e perdedores, principalmente quando a prudência adverte que somos um país em que a política e seus caminhos gostam de ceder a emoções e comoções, que, não raro, ditaram o futuro das candidaturas. Raul Soares, depois imitado por Magalhães Pinto, já sentia isso, dizendo que a política assemelha-se à nuvem no céu: de momento para outra é capaz de afigurar-se completamente diferente. Pesquisas têm o destino das nuvens.

No momento, diante dos debates em torno de dois problemas sensíveis - alto custo de vida e baixa qualidade na segurança pública - a busca de preferências dos eleitores há que se inspirar nessas questões; e nada mais que elas. Mitigadas as dificuldades em qualquer uma, as pesquisas podem tomar rumos diferentes e ganhar olhares mais confiáveis.

Afora os desafios na melhor interpretação dos números. É o caso, entre outros, da indicação de queda brusca do prestígio popular do presidente Lula, contrariando o fato de essas mesmas pesquisas conseguirem mantê-lo na liderança dos eleitores, ou muito próximo dela. Há aí um desencontro de fenômenos que dificulta interpretação racional. De fato, parecem fatos incompatíveis a queda de prestígio e a viabilidade eleitoral. Melhor, então, é considerar que os cenários tanto podem mudar como podem permanecer, já que há tempo suficiente para tudo, para tantas coisas que hoje não podemos enxergar. Os especialistas dos institutos averiguadores têm explicações técnicas, mas nem sempre coincidentes com as manhas da política.

Para 2026 talvez seja prudente considerar que o pleito, visto de tão grande distância, pode, no máximo, indicar possibilidades quanto a conhecidos perfis presidenciáveis, sem que isso seja bastante para traçar previsões quanto à conduta a ser adotada pelos eleitores, que, neste momento, andam mais preocupados sobre como se safar dos preços da mesa de todo dia, e da violência nas ruas. Quanto a esses problemas não há possíveis candidatos a que, desde já, o povo possa recorrer, o que se torna ainda mais claro se dermos entendimento ao fato de o Brasil não ser único e igual como ente social. Somos muitos Brasis, onde os destinos do Sul e do Norte, do Centro e do Nordeste só no mapa se alinham e têm intimidade. Fora disso, nossos eleitores são estrangeiros da mesma pátria em que moram, pouco se conhecem politicamente, quando encaram o voto.

Estamos especulando sobre dúvidas em relação às urnas do próximo ano, e o rol de fatos e fatores que reduzem a capacidade de elas, desde já, poderem esparramar reais possibilidades. Por sobre tudo, levemos em consideração que o quadro fica na dependência de como estarão e como serão Lula e Bolsonaro no grande jogo, atores de um festival de radicalização que ninguém supera. Se ambos se mantiverem fora, ausentes ou só como apoiadores, a disputa pela sucessão será totalmente diferente. Ou, ainda - vale indagar - como se situarão os governadores dos principais estados, que têm sinalizado disposição de interferir, queixosos das rupturas do federalismo que insiste em ficar longe do ideal.

Há, portanto, um conjunto de indagações sem respostas imediatas, muitas dúvidas e talvezes para mostrar que as pesquisas sabem pouco. Ou estão apenas mais ou menos informadas.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

 Ruas das “horizontais” e suas histórias



“De gôndolas, em sonhos belos,
Desfilam nobres casais:
Os rapazes de Martelos
E as moças da Henrique Vaz”
(Paraibuneidas)


Aquelas velhas estradas que os pioneiros abriam, caminho das aventuras e da ânsia de descobrir riquezas e caçar escravos, jamais escaparam de um destino comum: os bandeirantes passavam e deixavam para trás roças recém-plantadas, um posto de pousada e poucas mulheres que se dispunham a ficar para servir com o corpo aos viajantes ávidos, que, depois de longas jornadas, traziam grandes apetites de comida e amor. Sempre foi assim, e nada faria com que o Caminho Novo de Garcia Rodrigues Paes tivesse diferente sorte.
1 - Pelo que sabemos, os primeiros cronistas que por aqui passaram preferiam ignorar esse detalhe da incipiente ocupação do vale do Paraibuna. Nada registraram, como se não tivessem visto ou experimentado mulheres que se dedicassem ao ofício do sexo. Existiram, contudo. Pelo menos na Rocinha da Negra, na divisa das províncias, onde eram frequentes as baldeações e as paradas de Tiradentes, que desde 1783 dava combate aos assaltantes da estrada, como o terrível bando de Joaquim Montanha, famoso pela crueldade. Havia mulatas trabalhando na pequena propriedade rural que o alferes tinha no lugar, e consta que alimentava especial preferência por elas.
De forma que, pelo Caminho Novo, o homem que passava podia ir ao prazer, antes do sacrifício e viagem de semanas para Vila Rica. A propósito, para confirmar as visitas-relâmpago, sabe-se que, nessa época, eram comuns os casos de crianças que cresciam apenas com as mães, sem que conhecessem nem soubessem o nome do pai. O pai ia-se, quase sempre para sempre.
2 - À medida que a cidade crescia, conta o historiador Roberto Dilly, os “homens de moral” cuidavam de afastar, para o mais longe possível, as mulheres que se dedicavam à prostituição, removidas do centro, mas não tanto; afinal, a distância reduziria a clientela. Esse jogo de inconveniência não deixava de ter uma pitada de hipocrisia no receituário do moralismo da época. Mas tinha de ser jogado, em nome das famílias e das jovens recatadas.
Em Juiz de Fora, primeiro foi a Santa Rita, que a demarcação das ruas condenou a ser sede da zona boêmia, com seus buracos, lama, esgotos aparentes e casas paupérrimas com cerca de bambu. Eram tais casas o primeiro endereço dessa gente de “vida airada”, expressão criada por Ignácio Gama, o primeiro escrivão de órfãos.
Segundo Dilly, ali viveram algumas que ficaram famosas, como a quase negra Lima, a Aninha Tamanduá, Florência Gambá e Merência, sem faltar de uma que a todos apavorava, Frutuosa, com fama de feiticeira. De reza cruzada por prostituta e feiticeira ninguém escapava, já se dizia.
Com o passar dos anos, a Santa Rita foi dividir a tarefa com a rua do Sapo, que depois se chamaria Conde D’Eu, e hoje é Fonseca Hermes. Tanto dividiu, que logo estabeleceu um diferencial na categoria de prestadoras do amor pago. É de Jair Lessa, em seu “Juiz de Fora e seus Pioneiros”, a explicação: na rua do Sapo, as mulheres sofisticadas, louras, de pés macios, enfeitadas com colares e brincos emprestados pelas cafetinas; na Santa Rita, para os viajantes pobres, mulher de segunda classe, escrachada e cachaça!”.
3 - Mas a zona se atrevia em pescar homens um pouco além dos limites, atingindo seu comércio a parte baixa da Liberdade (Floriano Peixoto), Hipólito Caron e Avenida Kascher, como também a ribeira do Paraibuna. Paulino de Oliveira, em “Memórias Quase Póstumas”, informa que, em certa época, lá pelos anos 30, o meretrício começava na Marechal Deodoro, em frente à atual galeria Pio X, atingia a Batista de Oliveira, depois a Floriano e a Hipólito Caron, Famosas por ali eram Maria Repinica e Rita Espanta Patrulha, esta capaz de encarar a polícia em qualquer circunstância.
Na rua do Sapo, algo a denunciava: a terra amarelada. Pedro Nava confirmou, ao falar de Felisberto Soares Horta, casado com sua prima. Era proibido limpar as botinas antes de entrar em casa, porque a mulher queria saber por onde o marido havia andado. Periciava. Se chegasse com sinais de terra amarelada, dava-se mal…
A proximidade com o rio custou caro a elas, porque facilmente as águas das enchentes invadiam seus quartos. Ficavam desalojadas, sem produzir e sem comer, ocasiões em que esse conjunto de misérias fazia prosperar nelas certo temor de que aquilo era mesmo castigo, não o suficiente para regenerações, sempre raríssimas. Mas, na madrugada de 27 de janeiro de 1922, primeira vez em que a terra tremeu em Juiz de Fora, muitas traçaram o sinal da cruz, invocaram a proteção de Deus e correram temerosas para o Milheiros (Largo do Riachuelo), onde se julgavam a salvo.
4 - Dias de faturamento geralmente coincidiam com os fins de semana. Mas bons mesmo eram aqueles em que os operários recebiam o salário, porque, enquanto os casados corriam para casa, onde dívidas e despesas os esperavam, os solteiros tomavam o rumo das mulheres. E elas já sabiam quando haveriam de trabalhar mais: “Dia da Mineira”, “Dia da Pantaleone”, “Dia da Meurer”. Cada fábrica tinha seu dia de suprimento. Não menor era a capacidade da Hipólito Caron de denunciar a longo prazo esses habitués. Nava, no referido “Baú de Ossos”, identificou ali um viveiro de sífilis, tragédia que infelicitou o amigo Isador (sic), sempre cuidadoso para não ser flagrado nas escapadas à zona. Era membro da União dos Moços Católicos...
Certa vez, conta, “foi contemplado com uma carga composta de gonorreia de gancho e uma cavalhada de provocar inveja aos melhores haras”. Situações bem comuns na crônica prostiputaz, como o memorialista definia a rua do Alecrim. Dilly anotou rua da Alegria e rua das Pecadoras, sem dizer exatamente onde elas se situavam. Mas provavelmente as tradicionais de sempre.
5 - As peripécias da prostituição floresciam a ponto de preocupar o bispado de Mariana, que enviou emissário para tomar providências e sacudir nossos religiosos, que viam esse e outros problemas sociais apenas com olhar de paisagem. Porém, nem por isso, as memórias do comércio do sexo deixaram de ganhar deliciosas cronicas de Murilo Mendes, poeta que em Juiz de Fora nasceu e viveu na infância e em breve adolescência. Já morando na Europa, lembrava-se daquele tempo em que a aristocrática cidade era “um pedaço de terra cercada de pianos por todos os lados”; mas sem esquecer das prostitutas mais famosas, a começar pela Desdêmona, vice-putain; não a primeira, porque a precedência não podia ser negada a Ipólita (sem H). Desdêmona, que ninguém ficou sabendo de onde viera, “foi plantar suas coxas na rua do amor industrializado, excomungado”.
Bem antes, ficou o caso pitoresco do grande romancista Artur Azevedo, que aqui morou alguns meses, e se foi, queixando-se de que Juiz de Fora é fria demais no inverno e quente demais no verão. Pois Artur acabava de assistir no teatro à peça “O Naufrágio do Vapor Porto”, e, faminto, pediu que lhe indicassem o lugar onde àquela hora da noite pudesse comer. Um gozador recomendou a “Maison Moderne”, e só ao chegar lá ele descobriu que era um prostíbulo da mais baixa categoria.
Houve também o advogado Amanajós Alcântara de Vilhena Araújo, com justiça celebrado com o maior e mais encrenqueiro boêmio da cidade em todos os tempos. Fiel vassalo das bebidas fortes, bastava-lhe um pouco do muito álcool, diariamente consumido, para promover os maiores transtornos. Temido pelas crianças e evitado por toda gente de bem, Amanajós não perdia oportunidade de visitar a zona boêmia, onde, no dizer de Murilo, “moravam as horizontais e ele horizontalizava-se a noite inteira”. Desgarrafadamente bêbado, livre depois dos exercícios de Afrodite, cerca madrugada acabou adormecendo junto à jaula de um circo, sem cuidar que ela ficara mal fechada, e desmaiou junto ao leão Marruzko. Para sorte sua, o felino dormia o sono de um ancião desdentado e vegetariano…
6 - Na velha redação do “Diário Mercantil”, lá pelos anos 50, veteranos repórteres ouviam no seu plantão histórias sobre conhecidas prostitutas do triângulo formado pelas ruas Sapo, Liberdade, Hipólito Caron e, mais tarde, Henrique Vaz, para onde foram empurradas, quando o delegado Abreu decidiu que não podiam mais ficar nas ruas centrais. Cuspindo fogo, rumaram para o outro lado do Paraibuna, condenação a que o folclore da cidade atribuiu alguns insucessos do delegado na política. Praga de puta. Mas acaba que a Henrique Vaz é que se celebrizou como a grande e última zona da cidade. Foi onde, já no começo do fim, celebrizaram-se as pernas de Tereza, perfeitas, torneadas e cobertas de uma penugem suave, que fazia lembrar os pêssegos da melhor procedência. O sobrenome de Tereza era Bezerra, não do batistério, mas para celebrar uma de suas habilidades. Tal como as vizinhas, manejava também com destreza a navalha, com que se defendia de desaforos dos gigolôs. Brigas eram comuns e diárias, principalmente depois do consumo de cervejas e cachaças no Bar Brasil. “Corre, que aí vem o Dorigatti”, investigador da Polícia, com terno e sapatos brancos, contrastando com o preto do bigode bem pintado.
Conta-se ainda, com muita graça, a história singular de Aurora, que teve passagem meteórica por Juiz de Fora. Certo dia de junho de 1940 ela desceu do Rápido, trem da Central do Brasil, foi para um dos quartos alugados para encontros na Floriano. Do pouco tempo em que morou ali, ficou a fama de que só conseguia atingir ou fingir o clímax do prazer cantarolando a estrofe do Hino Nacional, ato inconsciente que talvez resultasse de um distante avô, protagonista da Retirada da Laguna na Guerra do Paraguai. Deu-se que, certa noite, prestando na cama seus favores ao cabo Expedito, corneteiro do Regimento do Décimo RI, ele, não menos cioso das posturas cívicas, recomendadas no quartel, pôs-se de pé, nu, com a mão e todas as demais partes do corpo em posição de sentido ao ouvir de Aurora, no êxtase, o primeiro sinal da estrofe do hino. À inesperada cena de patriotismo seguiu-se o insucesso das boas intenções que o coitado acabara de trazer do quartel.
7 - Foram as aventuras e tragédias encenadas nos quartos de biombo de Desdêmona e Ipólita (Sem H), da Florência Gambá, de Tereza e quantas alugavam o corpo para uma vida quase invariavelmente curta e trágica que construíram a crônica da prostituição. A “vida airada” foi desaparecendo aos poucos. As ruas da boêmia ganharam novas funções e biografias. Zona virou coisa demodê, e os que precisam daqueles serviços ganharam outros endereços, ao ar livre descampado da Titia do Aeroporto ou em companhia das moças que vinham trabalhar no K-2 de dona Carmem Maranhão.
Em meados da década de 60, na Rádio Industrial, vivíamos, com José Carlos, o Repórter da Madrugada, com o carro de reportagem tentando descobrir onde estava a notícia naquelas horas quase mortas. Quanta vez o fato estava na Henrique Vaz!, domicílio daquelas pobres mulheres, damas de uma rua em fim de carreira, decadente, cenário apagado de incríveis histórias. Mas ainda houve tempo de conhecer e entrevistar o legendário Juvenal, com seus oitenta e tantos anos, metade dos quais dedicados às “horizontais” com invulgares façanhas. Mas dele nada mais havia, além da simbólica presença e velhas lembranças. Pobre Juvenal. Pendia inerte a veneranda tripa. Ouvimos sua história e fomos dormir.


terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

 



Roupa nova para o sistema?

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil"))

Uma discussão que avança, ainda em passos lentos, vai levar ao Congresso a ideia de se introduzir o semipresidencialismo na organização política do país, supondo-se que não faltará aos proponentes o cuidado de, sem precipitações, submeter o projeto a uma ampla discussão com lideranças e com a sociedade em geral. Porque há, como sempre houve, temores ante as grandes transformações, como sabe o deputado Lafayette Andrada, tido como relator. Uma década atrás, seu pai, Bonifácio, também deputado, pretendeu percorrer o mesmo caminho, e soube que as dificuldades não são poucas. Tome-se em conta, por exemplo, que a limitação dos poderes do presidente da República não é do agrado de Lula e de Bolsonaro, que divergem em tudo, menos nisso. Não gostariam de ter um primeiro-ministro colado nos seus calcanhares, mesmo tendo de reconhecer que se trata de uma evolução para aperfeiçoar a democracia e para instituir a verdadeira harmonia entre os poderes. No Gabinete as crises são vencidas com a voto de confiança do parlamento e com mudanças pontuais no ministério, como nos dá o testemunho de alguns dos melhores países do mundo. Neles o chefe de estado é um, chefe de governo é outro. No quadro de hoje, levanta-se a suspeita do casuísmo, dúvida que nunca deixou de existir, quando o tema aflorou.

Não menos oportuno será mostrar aos brasileiros o real sentido do prefixo semi na desejada transformação. Explicar isso adequadamente, removendo-se o temor de que o objetivo é criar apenas um presidencialismo mais ou menos, ou um parlamentarismo pela metade. Algo que precisa ficar bem esclarecido, antes mesmo que o projeto avance. Por que semi?

Em 1993, um plebiscito mal intencionado, sujeito a interesses palacianos, convocou o eleitor comum, sem que ele soubesse exatamente a diferença entre regime e sistema. Afogou o parlamentarismo nas urnas, como pode voltar a derrotá-lo, se o tal semi prosperar e chegar ao referendo.

Bem avaliada, a tentativa de mexer na base do sistema assusta. A começar entre muitos bacharéis militantes no Congresso Nacional, que nesse ponto preferem esquecer seu mestre Rui, muito citado e pouco lido. Disse ele que “o presidencialismo brasileiro é a ditadura do estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade sistemática do poder Executivo”. O Águia deixam para futuras citações.

Outro ponto de resistência ao novo é a lembrança da ferida que ficou do golpe contra o governo João Goulart, tolerado pelos comandos militares por estar sob os grilhões de um parlamentarismo circunstancial, o que explica o fato de o presidente manietado ter trabalhado, todo o tempo, para ver restaurados seus antigos poderes. É o que parece desautorizar alguns comentaristas ao afirmar que o então primeiro-ministro Tancredo Neves estava em véspera de convencer Goulart a render-se à realidade e esquecer os pretendidos poderes. Não obstante, é preciso lembrar que divergência doméstica na bancada do Ceará, entre Martins Rodrigues e Virgílio Távora, impediu que Tancredo disputasse uma cadeira de deputado por Minas sem deixar de ser primeiro-ministro. Querem que, não fosse isso, talvez a História do sistema fosse outra. Mas não há indícios palpáveis para assegurar.

Para que se tenha dimensão objetiva do manancial das resistências a serem reeditadas bastaria dizer que o tiroteio vai sair das trincheiras do próprio presidencialismo, com apoio das bancadas fiéis de deputados e senadores. Tomemos, de novo, a experiência com João Goulart, que, como se disse, outra coisa não arquitetava que não a derrocada do Gabinete. Sabia como fazer. Quando indicou San Thiago Dantas, do PTB, para primeiro-ministro, só o fez porque tinha certeza da rejeição. Mais claro ainda, ao submeter ao Congresso o nome de Auro de Moura Andrade. Sabendo que ele alimentava simpatias parlamentaristas exigiu uma carta de renúncia antecipada…

A luta pelo parlamentarismo é antiga, viesse ele puro ou com a roupagem do semi, como agora se pretende. Memórias de meio século da Câmara dos Deputados guardam a figura retilínea do pioneiro gaúcho Raul Pila. Passou a vida lutando por essa ideia, sonhando o impossível.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

 

A Pauta é Política

14 fevereiro 2025

PRÓS E CONTRAS

A Atlas figura entre os mais recentes institutos a ir a campo para avaliar como anda o ânimo da população em relação ao governo Lula. Tem, a seu favor, o fato de buscar também o sentimento das redes sociais, o que, parece, amplia a capacidade de aferir. Na sua mais recente pesquisa revelou que a rejeição de Lula subiu para 51.4% ; um recorde, atribuído, em grande parte, ao fracasso do governo no item segurança pública.
Há um detalhe que tem escapado dos pesquisadores. É que 45.9% dos consultados aprovam o governo, o que também é um número expressivo. Mas não dizem a razão de quase metade dos pesquisados continuar favorável ao governo, que a outra metade repudia.

EM ASCENSÃO

Presidente do PSB mineiro, o deputado Noraldino Júnior passou a fazer parte do círculo de maior influência da Assembleia junto ao governador Romeu Zema. Claro, isso o coloca mais próximo das intimidades da administração, mas também faz pesar sobre ele as reivindicações da cidade e da região, que não são poucas.

SOBRE A CARESTIA

Pinçado do “Jornal do Brasil” de terça-feira, a seguinte observação sobre o modo de o presidente Lula lidar com a carestia:
“Em meio a clamores, incomodado pelo noticiário sobre os preços de alimentos, o presidente Lula trouxe sua contribuição. Falando aos baianos, com uma ideia jamais acusada de originalidade, recomendou que o comprador, diante de preços excessivos, simplesmente deixe de comprar. Não comprar nem consumir. Já que o governo não encontra melhor caminho, o cidadão então é chamado a desconhecer a dificuldade, mesmo que, aceitando tal convite, possa enfrentar perigoso desdobramento, porque, estando tudo com preços inacessíveis, não comendo o minimamente indispensável, as camadas mais pobres estão condenada à inanição. A oposição não perdeu tempo, e acha que, indiretamente, mas sob o mesmo raciocínio, se o desejável é não gastar, o presidente pode estar tolerando que também deixemos de pagar os impostos, que agridem os bolsos muito mais que o feijão e arroz...”.

BARBAS VIZINHAS

O Partido dos Trabalhadores completa 45 anos, sem que possa queixar-se, porque em sucessivas eleições o povo lhe deu repetidos votos de confiança. Lula, sua principal figura, exerce a presidência da República pela terceira vez.
Há, entre suas fileiras, a disposição de examinar os pontos fracos que vêm ruindo seguidamente suas forças. Basicamente, sem dificuldades, pode-se afirmar que divergências internas têm comprometido o partido. Como lição, valeria lembrar aos petistas que divergências internas e aspirações inconciliáveis é que estão levando o PSDB à falência; que também já foi muito forte e está morrendo.

GRATUIDADE

Está na Câmara Municipal o projeto de gratuidade do transporte coletivo para todos os estudantes. Caso seja aprovado, custará mais R$ 3 milhões aos cofres públicos. Diz a prefeita que o Executivo garantirá a verba para tanto. “Temos a previsão do subsídio, provavelmente vai ter que haver algum remanejamento interno, mas sem nenhum prejuízo, porque, na verdade, esse recurso não apenas garante a mobilidade de um segmento muito importante, mas também favorece a educação”, explicou.

A medida proposta teve origem na Câmara, por iniciativa do vereador André Luís (Republicanos), acatada pela prefeitura, pois, constitucionalmente, só o Executivo pode criar despesa.

Embora louvável, ampliar a gratuidade nos ônibus significa a retirada de recursos de outra área. O investimento financeiro aponta para, em futuro próximo, a gratuidade total no uso transporte público.

HOSPITAL FANTASMA

Prosseguem a luta e as divergências entre a prefeitura e o Estado sobre o prometido e o nunca realizado Hospital Regional. No lance mais recente, o governo estadual reclama devolução de perdidos R$ 28 milhões, que investiu numa obra estancada. O assunto é antigo.
Custódio Mattos foi prefeito entre 2009 e 2011. Na sua segunda administração as obras do hospital tiveram as primeiras fases de execução, sob a responsabilidade da Secretaria de Obras. O que o governo de Minas afirma, por nota à imprensa, é que “não foi comprovada a utilização de verba repassada", como também "há uma série de erros graves no processo de construção, apontados em laudos e diagnósticos". O assunto está sob análise da Justiça, mas sem data para uma solução, mostrando como a população, que depende do sistema público de saúde, fica à mercê de controvérsias políticas e jurídicas.
A prefeitura encaminhou suas propostas para retomada da obra, mas o governo de Minas insiste na cobrança da dívida, e diz que não vai investir na edificação existente, pois ela tem erros construtivos. Nesse imbróglio, sobram questionamentos sem respostas. Por que até hoje os órgãos de controle e fiscalização não se pronunciaram sobre o assunto? Talvez seja o momento de uma auditoria independente das partes em litígio.

TAREFAS

Reconduzido, por mais dois anos o deputado Betão (PT) continuará à frente da Comissão de Trabalho, Previdência e Assistência Social da Assembleia Legislativa. São três áreas de grande sensibilidade, o que faz prever muito trabalho para o deputado e para os demais pares que também a compõem.



Bernardo e o café: ideia esquecida


Certa vez, o ex-prefeito José Procópio Teixeira Filho disse que uma coisa da qual Juiz de Fora jamais poderia duvidar é que o maior entre todos os homens da cidade foi Bernardo Mascarenhas. De fato, nunca encontrei quem duvidasse disso. Foi o criador da primeira usina hidrelétrica, a fábrica de tecidos movida a teares, que ele próprio foi ver fundidos nos Estados Unidos, fundou a Companhia Mineira de Eletricidade, que produziu e distribuiu a iluminação pública, fundador do Banco de Crédito Real. Porém, nada se diz sobre o papel que ele desempenhou na política brasileira do café, o que está a exigir melhor estudo.
Dir-se-ia que Bernardo foi um pioneiro no campo das preocupações com o risco de monopolização do produto. Escreveu ele:
“Monopolizada a exportação do nosso café quase exclusivamente por casas estrangeiras, o ouro resultante é para elas uma outra mercadoria de venda. Por isso, trabalham para comprar o café cada vez mais barato e venderem o seu ouro cada vez mais caro”, advertia.
Também não convém ao Brasil – escreveu – altíssimos preços do produto, pois isso reduz o consumo e estimula a concorrência estrangeira, além de perturbar o regime agrícola de cereais com a monocultura, obrigando a importação de gêneros alimentícios.
Era preciso, na sua visão, adotar o regime de armazenamento como forma de regular o mercado. Já pensava assim no fim do século 19, uma verdade que até hoje não foi desmentida. E daí sua proposta, verdadeiramente inovadora: a criação do papel-café, que seria uma espécie de moeda para garantir estoques permanentes de 4 milhões de sacas. Previu o papel-café facilmente aceito pelos produtores, pois teria quase o valor da moeda corrente e de reserva. Essa ideia chegou a sair da cidade, e foi tema de estudos e debates, por iniciativa dos deputados Érico Coelho e Augusto Clementino. Valeria pesquisar.
Bernardo Mascarenhas estava além de seu tempo. Observemos o que escreveria no “Correio de Minas”, em dezembro de 1898, com correta validade para os nossos dias:
“Estou entre os que pensam que o governo não deva ser comerciante ou industrial”.


Ascensão e queda de uma grande riqueza
Foi há cem anos, final da primeira década do século passado, que se davam os primeiros passos para a consolidação de Juiz de Fora como centro de referência industrial. Mas, paralelamente, antecedendo a ruína, também se viveu naqueles dias o auge da cafeicultura, setor que, pouco a pouco, foi absorvendo os volumosos capitais acumulados pelos fazendeiros. Alimentando as máquinas e os teares, os muitos dinheiros que saíam dos cafezais foram os mesmos que deram à cidade o charme dos saraus dos casarões, enviaram jovens para estudar na Europa, enquanto as moças tocavam piano e falavam francês.
Os contos de réis já vinham produzindo muitos barões. Procópio Filho, ex-prefeito e historiador, relacionou 28 nobres, em sua maioria barões, “quase todos líderes da cafeicultura”.
Dois fatos talvez fossem suficientes para confirmar a grandeza econômica daquele tempo. No dia 24 de julho de 1902, Batista de Oliveira esnobava, ao abrir, em Paris, um escritório de propaganda do café de Juiz de Fora, então celebrado como o melhor do Brasil. Dezoito anos depois, também em julho, o Estado de Minas comunicava que, das 3,8 milhões de sacas do produto mineiro, 120 mil eram do município. Vinte mil saindo de Retiro, estação que nem existe mais.
Essa expressão econômica tinha reflexo direto nos hábitos da população, como se lê nas crônicas da época. Em dezembro de 1930, o comércio quis autorização para aumentar o preço do cafezinho para 200 réis, provocando intensa campanha contrária da imprensa; e o aumento só seria permitido três anos depois...
Importância ainda maior, em referência à cafeicultura, não apenas local mas do resto da Zona da Mata, é citada pelo historiador Celso Falabella, para quem o poder da rubiácea evitou uma incorporação quase natural da região ao estado do Rio de Janeiro.
Com esse desempenho, nossas roças ficaram devendo, primeiro, ao escravo, uma população em torno de 20 mil negros, só suplantada por Leopoldina, onde ela beirava a 37 mil, segundo informa o historiador Lima Bastos. Depois, deveu-se também muito ao colono italiano. Júlio César Vanni pesquisou e concluiu que, entre Juiz de Fora, Bicas e Pequeri 650 famílias italianas estavam dedicadas ao plantio.
Foi um tempo em que enormes fazendas floresceram à sombra dos cafezais, acompanhando a experiência pioneira de Nogueira Gama. Ele era dono da Fazenda São Mateus, cujas terras se estendiam até Simão Pereira. E, quando nos morros já se plantava pouco, ela manteve ares de nobreza na hospitalidade. Foi refúgio preferido de Getúlio Vargas, que em 1935 ainda viu ali as últimas rodas de dança dos colonos que desciam dos cafezais.
Tudo muito bom, tempos gloriosos para a economia, mas a região teve que pagar um alto preço. No furor da cafeicultura, incontáveis hectares de florestas nativas derrubadas. O café mostrou, e ainda mostrará num longo futuro, que não difere do destino das grandes riquezas que saem da terra: têm seu tempo de glória e fartura, mas também de pobreza e saudade.


Cafezinho não falta
Os jovens, nem tanto, mas quem vem de outras gerações não abre mão dos 35 centímetros cúbicos dessa infusão. O mineiro levanta com o cafezinho, é seu companheiro durante todo o dia, e muitas vezes é a despedida antes da cama da noite.
Gabriel Gonçalves contou, em seu programa da antiga Rádio Industrial, que em Sarandira havia uma roda de carteado sempre em casa de família. De uma delas, onde
não se serviu café, reclamou o coronel Chico: “Barai veio não tem portância; cobertô rasgado eu não ligo; não pagar conta, vá lá. Mas não dá café, isso eu não guento”...
Contavam os mascates que corriam as roças que na Zona da Mata, talvez mais que em qualquer outro canto de Minas, o cafezinho, por ser indispensável boca de pito, tinha uma receita infalível: preto como o demônio, quente como o inferno, puro como um anjo, doce como o amor.


Um papo no Santa Helena
Nenhum ponto foi tão referencial na década de 50 e por mais alguns anos na década seguinte. O café Santa Helena era passagem obrigatória para políticos, empresários e intelectuais, que tinham de dedicar a essa casa alguns de seus minutos diários; porque sem isso não ficavam sabendo o que estava acontecendo na cidade, desde os fatos reais, concretos, até mesmo as fofocas políticas, essas grassando intensamente na porta, onde deputados e vereadores se juntavam.
Nos dias mais frios, quando os homens procuravam os raios do sol (o que ainda existia na Rua Halfeld, depois tomados pelos grandes edifícios), os pedestres eram obrigados a sair para o asfalto. Porque a calçada estava habitada pelos grupinhos que conversavam.
Para se ter uma ideia, basta lembrar que não houve decisão importante na Câmara ou na Prefeitura; não se decidiu uma candidatura ou eleição, que não tivesse seu começo num bate-papo no Café Santa Helena. Como também foi ali que, não raro, dois ou mais políticos saiam aos bofetões, principalmente nos tempos de intolerâncias entre UDN e PSD.
O vereador Pedro de Castro, pessedista, sempre pareceu mais polêmico, gesticulador, mas, ao mesmo tempo, extremamente cordial e agressivo com os adversários. Não escapou de alguns pugilatos.
Em qualquer dia do ano, o primeiro a chegar, nunca depois de 7h30min, era o vareador Itamar Rattes Barroso, outro do PSD. Tinha uma explicação: era líder do prefeito Olavo Costa, e ali, depois do cafezinho, durante o cigarro que fumava com longa piteira, começavam as articulações para a sessão legislativa que viria à noite. Um jornalista chegou a chamar o Santa Helena de “plenarinho”. Quando a conversa requeria tempo e mais discrição, os políticos passavam para o Café Astória, exatamente na esquina da Halfeld com a Rio Branco, porque ali havia mesas, e era possível pedir água mineral, torradas e média com café e leite, pretexto para conversar mais tempo. Habitual também era o chá de mate, tudo sob a vista mal-humorada do garçom Barreto, de quem jamais alguém vira nascer um sorriso.
Parar no Santa Helena era ainda um símbolo de cordialidade, a que achavam-se obrigados os políticos de grande expressão nacional. Ali, algum dia, chegaram ao balcão, para o cafezinho, homens como Ademar de Barros, Eduardo Gomes, Luiz Carlos Prestes, José Maria Alkimin, Tancredo Neves, Camilo Nogueira da Gama, Layr Tostes, Cristiano Machado, Magalhães Pinto, Bias Fortes, Milton Campos, para citar apenas os principais. Foi durante um cafezinho que o então ministro da Fazenda, Tancredo Neves, decidiu abrir recursos para financiar a construção do edifício do Clube de Juiz de Fora, que em 51 tinha sido destruído por incêndio, na última noite de carnaval. Em agosto de 78, durante entrevista, Tancredo disse a mim e ao vereador Jair do Nascimento, no Brasão, que o cafezinho do Santa Helena tinha sido o mais caro de toda sua vida...
Foi também o ponto preferido pela imprensa. E não podia ser diferente, porque se tornou fonte fecunda para o noticiário. José Carlos, Heitor Augusto, Dormevilly Nóbrega, Almir de Oliveira (o primeiro repórter de cobertura diária na Câmara, a partir da redemocratização, em 47), Paulo Lens, Fábio Nery, Paulino de Oliveira estavam ali diariamente. Dormevilly era, além de jornalista, o secretário da Câmara, o que lhe dava uma dupla importância: fonte do noticiário e arauto das notícias. Paulino tinha um hábito: acabar de tomar o cafezinho, e fumar, invariavelmente encostado no poste mais próximo, posição em que era capaz de permanecer durante duas horas, sempre com o pé direito erguido para trás, apoiado em uma saliência que os velhos postes da Halfeld tinham na parte inferior.
O Santa Helena vendia também cigarros, rapé, charutos e alguns tipos de balas. Para acompanhar o cafezinho, se o freguês desejasse, alguns bolinhos doces e um pequeno pastel.
Outro dado curioso, este de importância não apenas para os frequentadores, mas também para todas as pessoas que saíam da Rio Branco para descer a Halfeld: na parede externa do Santa Helena havia uma pequena placa de mármore escuro, onde as funerárias únicas da cidade – Candelária e Santa Cruz – afixavam, de manha bem cedo, as notas de falecimento. Pessoas que tinham morrido na noite anterior ou na madrugada. Era obrigatória a parada, para se saber quem havia “dado baixa”, como dizia Paulino.
Com o fim do velho café, que morreu juntamente com muitos de seus frequentadores diários, ficou para trás um capítulo da história de Juiz de Fora, da história do nosso jeito de ser, nossa gente. Era a porta de entrada da rua Halfeld, onde se falava de tudo e se falava mal de quase tudo. Dizia-se que mulher que passasse nesse trecho sem despertar qualquer comentário de suspeita é porque se tratava de senhora verdadeiramente virtuosa... porque nada escapava da fauna do Santa Helena.