Às favas com Montesquieu
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
O segundo semestre não podia ser mais generoso para os demônios políticos, que fazem arder as relações entre os três poderes, já não apenas divergindo, mas conflitando. Os últimos dias, no Brasil, andaram bem diferentes daquilo que desejou o velho Montesquieu, 250 anos atrás, no seu “Espírito das Leis”: cada qual dos poderes com atribuições específicas, bem definidas, mas, sob o ânimo de indispensável harmonia entre eles. Ao contrário, aqui temos caminhado para algo bem diferente, com Executivo, Legislativo e Judiciário desencontrados quanto aos limites das linhas de deveres constitucionais, cada qual cuidando de interpretá-los à sua maneira. Nossas lideranças ignoram a lição do velho pensador francês, que passou pela História confirmando sua eficácia, salvo nos períodos de ditadura. Aqui mesmo, nossos melhores momentos na política foram os intervalos em que se observou aquele princípio básico. Hoje, em Brasília, o modelo vigente da política aposentou e relegou Montesquieu.
Se faltava algo para coroar o clima infernal veio, na semana passada, nova derrota do governo no Congresso, quando se surpreendeu com a humilhante ruína do decreto que pretendia buscar alguns bilhões de reais nos bolsos bilionários do IOF. Nem se preocuparam os parlamentares com divagações de natureza técnico-fiscal, preferindo achar que a prometida incursão, meramente regulatória, escondia, na verdade, a intenção arrecadatória. Para derrotar o governo, com a simpatia da opinião pública, Câmara e Senado bradaram o “basta de tanto imposto”, bandeira que é do agrado geral. Resultado disso foi a Presidência da República e o parlamento distanciando-se, como raramente se viu de forma tão aguda, o que em boa cota se deve a ela, pobre de competência para articulações.
( Sentindo a fragilidade do diálogo, o Congresso ampliou as maldades, fazendo uma espécie de pique-esconde com o ministro da Fazenda, que, incansável, transitou por plenários e engoliu jantares, tentando vender a ideia de que a um país, tão machucado pela maior carga tributária do mundo, a breve sangria sobre os ricos não seria tão dolorosa, como, à primeira vista, se possa imaginar. Mesmo sentindo a derrota inevitável, o ministro Haddad, como ferreiro, insistiu, passou dias e noites martelando no ferro frio da bigorna que os deputados haviam preparado. Honrou o sangue. A propósito, a palavra haddad, em árabe, significa ferreiro).
2 - O inevitável desdobramento chegou para prosperar a crise de relacionamento entre o presidente Lula e o Congresso Nacional, o que, à primeira vista, surpreende, considerando-se que os partidos da base ocupam ministérios, enchem de afilhados o segundo e terceiro escalões. Por que não se preocupam, sinceramente, com o destino do governo?, que já não tem mais como escapar da pressão das emendas parlamentares, que ele próprio tem honrado como moeda de troca.
Outra explicação não há, nem pode haver. Câmara dos Deputados e Senado, com todo o conjunto de interesses que abrigam, entraram, resolutos, nos planos de antecipar o debate sucessório, e não prometem ajudar o presidente Lula a navegar, sem grandes esforços, em águas tão tranquilas como deseja para 2026. Na poeira dessa advertência, também se demonstra que, a começar no escorregão do IOF, os acordos de convivência estão chegando ao fim, impõem novas conversas e ajustes. Os deveres da lealdade circunstancial começaram a pedir desembarque, quando o painel de votação revelou que foram exatamente os partidos da base que trabalharam para deixar o governo e o ministro da Fazenda sem escada e com a brocha na mão. Nem se arrependeram, situacionistas e oposição, quando, ombro a ombro, alinhados, passaram por cima da derradeira denúncia de que deputados e senadores estavam contra os pobres e a favor dos ricos; esses que pagam o Imposto sobre Operações Financeiras.
3 – Mas, em campo tão fértil, o diabo não dá trégua, sente-se à vontade para enriquecer as divergências, e por saber que tantos males ainda pode produzir. Nada melhor, portanto, que empurrar a questão do imposto para o campo da judicialização. Rumo ao Supremo Tribunal, onde, com os ministros togados, Lula tem ampla maioria, para compensar os votos que lhe faltam no Legislativo. Mesmo com todas as certezas de que esse é um passo seguro para agravar as relações, com o Judiciário envolvido.
(Para não se expor diretamente, o PT sugeriu ao sempre solidário Psol que fosse bater à porta da corte, e denunciar o Legislativo por usurpar competência do Executivo. Não deixa de ser arriscado falar ao Supremo sobre competências usurpadas, pois os ministros podem se sentir vítimas de ironia…)
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