terça-feira, 20 de junho de 2023

 


Os politicamente expostos




(( Wilson Cid, hoje, no "Jorna do Brasil" 


 

E pensávamos que o estoque de perplexidades do primeiro semestre se esgotara com as hosanas que o governo reservou para receber o ditador Maduro, quando a Câmara dos Deputados, em nova façanha, aprovou projeto de lei definindo crime de discriminação contra pessoas politicamente expostas; os políticos e os familiares diretos, que não podem ter negada abertura de conta em instituição bancária, até que cesse a tramitação de processos judiciais em cujos autos sofrem acusações. Os bancos entram no caso como capa, pois, com base nas suas águas, certamente serão facilitadas outras incursões protecionistas. O acinte foi carimbado com base em dois cuidados altamente suspeitos: a votação realizada sob as sombras da madrugada, sempre preferida para os grandes crimes, e supressão dos pareceres pelas comissões técnicas.

Resta a esperança, ainda que duvidosa, de a proposta ser barrada no Senado; até porque, se 252 votaram a favor, 163 outros, com rubor, preservaram-se. Os números servem, ao menos, para estimular alguma resistência da parte dos senadores.

Pode-se alegar que não é exatamente o caso em tela, mas a adoção de proteção aos delitos tem encontrado acolhida numa preocupação, muito comum, de garantir que os julgamentos vençam todas as instâncias. Não que o instrumento recursal seja dispensável, mas porque, com grande frequência, torna-se atalho rumo à procrastinação, muitas vezes permitindo que as ações caduquem. Nossa Justiça, estimulada por iniciativas nem sempre republicanas da parte do Congresso, é farta no acolhimento de recursos, quando o processado dispõe de dinheiro ou prestígio social e político para tardar as sentenças. Entre os futuros favorecidos, certamente esses que pretendem se beneficiar do mais recente entre os escândalos.

Voltando aos “politicamente expostos”, outra conclusão permite considerar que o corporativismo, mais uma vez, foi capaz de superar divergências partidárias ou ideológicas. No caso presente não diferentemente. Bolsonaristas, petistas e centristas deram-se as mãos para garantir que o atentado fosse perpetrado. O que, de certa forma, faz sentido se associaram, porque, em se tratando de oferecer abrigo e proteção a políticos, considere-se que todos estão em permanente exposição. Nesse passo, justificou-se a investida suprapartidária.

Centrão, partido maior 

Os cientistas políticos é que dispõem de maior autoridade e sapiência para esclarecer, mas as evidências até que autorizam leigos, homens e mulheres do povo, a identificar dificuldades que afastam o país de uma organização partidária eficiente, sustentada na autenticidade. Uma dessas dificuldades, paralela à carência de conteúdo ideológico e programático naquelas organizações, pode estar - é quase certo que esteja – na progressiva consolidação do Centrão como instituição político-parlamentar impositiva. Por causa dele, os partidos com vagas nas casas legislativas são, muitas vezes, meras figurações, capituladas ante a certeza de que todos têm de dar obediência às regras do pragmatismo. Sem mensagem programática, os partidos cedem à razão pragmática. As últimas semanas cuidaram de expor isso com absoluta clareza.

Sente-se em qualquer votação parlamentar. As legendas, mesmo se entre elas estiveram as mais tradicionais, como MDB, PSDB, PSB, com antigas ou novas denominações, falam, quando muito, pela voz das lideranças. Os deputados podem comentar, expor, até postular, mas nos momentos decisivos o que orienta e determina é a voz do Centrão.

Esgana-se quem acha que esse rolo compressor seja novidade recente no Congresso. Na verdade, o grupo compacto, se bem contados seus tempos de vida, soma 36 anos, porque nasceu e prosperava já nos gabinetes constituintes de 1987. Cuidando de conter, na nova Carta, algumas aspirações mais à esquerda e defender os conservadores, o Centrão aprendeu como agregar e fazer prevalecer. Disso ainda hoje dá testemunho o deputado Artur Lira. Além de eficiente debelador de revoltas, ele vem da experiência de pecuarista nas Alagoas, e sabe como arrebanhar. De tal forma conduz o rebanho, que alcançou o direito de dirigir-se ao presidente da República e advertir: “O combustível está acabando”, metáfora para ir ao finalmente da questão: os deputados querem influir na indicação de nomes para 400 cargos ainda vagos na esfera do Executivo, como também ampliar emendas orçamentárias e, como reivindicação mais recente, exigem que estejam nas comitivas dos ministros, toda vez que houver visita aos canteiros de obras. É pouco, mas o governo não sinaliza disposição de reagir às pressões. Prefere não pagar pra ver.

A tragédia humanitária

A tragédia humanitária que é descrita na aventura de milhões de pessoas que tentam escapar das perseguições políticas e intolerâncias raciais não foi suficiente para lembrar aos governos que o 20 de Junho é, por decisão das Nações Unidas, o Dia Mundial do Refugiado. Estranha a indiferença pela data, pois são, hoje, raros os países não afetados, direta ou indiretamente, por esse grave problema. Registre-se que nada menos de 110 milhões foram forçados a deixar suas terras, em sua grande maioria sobrevivendo longe, sem mínimas condições de dignidade.

Está o Brasil cumprindo seu destino como país de longa tradição no acolhimento. Recebe sempre bem, o que explica o fato de muitos, milhares, optarem por fincar aqui as raízes definitivas, quando tiveram oportunidade de retornar. Diz a Organização Internacional para Migrações que tínhamos, em março, 17.470 venezuelanos, incapazes de suportar as agruras da ditadura de Nicolas Maduro. É nossa cota mais recente de velhas solidariedades, o que certamente não permite às Nações Unidas nos cobrar asilo aos africanos que fogem em massa.

À tragédia dos que escapam, soma-se uma outra, não menos dolorosa, que é a escravização a que vêm sendo submetidos homens para o trabalho e mulheres para a prostituição. Negros agenciados por negros do Sudão, já no embarque ou durante as arriscadas viagens nos botes improvisados. Não menos grave, revelou-se que 41% dos refugiados sobreviventes são menores de idade.

Tornando-se o Brasil referência para milhares de venezuelanos, que transformaram Roraima num lar que não sabem se temporário ou definitivo, as comissões de política externa do Congresso têm direito de atuar no centro dos debates internacionais em torno do problema. Sente-se que foram raras as vezes em que o tema mereceu a atenção parlamentar, mas é preciso torná-lo mais frequente, não apenas para que se manifeste nosso repúdio a práticas desumanas, que se têm revelado contínuas e progressivas, mas também para se cobrar cumprimento do direito elementar de multidões deslocadas de retornar à casa com segurança, tão logo estejam superadas as crises. Contra o retorno levantam-se mil dificuldades de ordem política, social e econômica. Não importa, pois é dever dos povos civilizados, sem exclusão dos que mais acolhem, defender o direito dos infelizes de voltar ao solo que por natureza lhes pertence.

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