terça-feira, 12 de março de 2024

 



Aventura de uma fiança



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

Entre os interesses imediatos da política latina, como se tem notado, está a prometida eleição na Venezuela, agora anunciada para 28 de julho, data inspirada nos setenta anos de nascimento de Hugo Chávez (1954-2013), com quem o país inaugurou uma série de atropelos, que acabaram levando a democracia à lona. As atenções são fundadas, a começar pelo fato de que vai estar em julgamento uma das mais nefastas ditaduras do continente. Se ocorrer de as urnas atingirem a retomada da normalidade no país; e, nesse caso, se Maduro não tiver clima para permanecer na Venezuela, estará sujeito à prisão no Exterior, justificada por passadas evidências de seu envolvimento com o narcotráfico internacional. Precisará de uma terra amiga com coragem para acolhê-lo.

O fim do pesadelo Maduro estaria marcando a chegada de novos tempos para a cidadania de seus compatriotas. Algo saudável também para toda a América Latina livre, pois é indiscutível que a Venezuela sempre foi uma nação importante, ainda que hoje afogada na tragédia dos direitos humanos relegados. Cenário de monstruoso contraste de ser uma das grandes misérias de que se tem notícia, em cima de um solo que guarda as maiores reservas de petróleo do mundo. Uma funesta urdidura entre riqueza e fome.

Mas as razões para temer o que está por acontecer ali não são poucas, o que sugere a previsão sinistra de que, mais uma vez, o processo eleitoral de Caracas estará afetado pela fraude, aliada a outras iniciativas comprometedoras. Bastaria lembrar que Maduro provocou o esvaziamento da candidata de oposição, Maria Corina Machado, baseando-se em dúvidas simuladas na interpretação de fatos que seriam atentatórios, não se tratasse de uma democracia inexistente. Mandou calar o sinal de uma TV alemã, que criticara seu governo. É claríssima sua má vontade com os opositores e, em particular, com os observadores estrangeiros, que gostariam de acompanhar e vigiar a verdade das urnas. 

No Brasil, onde o ditador ainda consegue desfrutar de simpatia oficial, o que, de certa forma, o ajuda a sobreviver, o presidente Lula tem sido generoso ao acudir o amigo. Ainda na semana passada, contrariando todos os que tem o colega venezuelano sob alta suspeita, alegou que não se pode precipitar julgamento sobre uma eleição que só acontecerá dentro de quatro meses. No caso presente, contudo, é claro que o sentimento pessoal prevaleceu e não a realidade política. O chefe de Caracas tem, num vasto currículo, comportamentos passados e presentes para recomendar prudência ante as garantias que vem dando sobre uma eleição isenta. São temores à margem de precipitações.

(Ramon Heredia, escritor uruguaio, venezuelano por adoção, ao ler essas coisas que os jornalistas brasileiros têm dito sobre Maduro, encontra jeito de ironizar. Se aqui falamos que em Caracas a justiça está a serviço do governo, as eleições pecam pela fraude, a fome prospera, a corrupção e a violência institucionalizaram-se, Heredia pergunta se no Brasil a situação é diferente…)

Disseminados pelo mundo afora temores e desconfianças em relação ao que vai acontecer com os vizinhos, o apoio antecipado que veio do Palácio do Planalto, em outra delicada incursão no campo da política externa, leva o Brasil a se aventurar como fiador de véspera para algo muito duvidoso.

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