terça-feira, 26 de março de 2024


Um problema doméstico



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

 


A recente e amarga queixa do presidente Lula quanto ao desempenho do ministério, farto de cadeiras e jejuno de resultados, talvez devesse ter ido mais fundo, em nome da origem dos fatos. Na reunião do primeiro escalão, para isso convocada, ele não revelou aos que o ouviam que o governo padece de uma crise de convivência interna, começando pela clara resistência do PT em relação aos ministros oriundos do Centrão, hoje dono de uma poderosa fatia do poder. O que inferniza o sono presidencial é esse desafio intestino. O problema tem prosperado nas entranhas palacianas, resultado do preço imposto por uma coalizão, imposta pela garantia de mínimo de governabilidade. Como ocorre com todos os amores de conveniência, esse também custa muitos favores.


Detalhe que, certamente, não pode escapar da acuidade presidencial, é que os adversários que atraiu para si, em troca de cargos e emendas parlamentares, não estão ao seu lado - nunca estiveram - para contribuir na execução dos projetos do Executivo. Seria excessivo exercício de ingenuidade, porque o Centrão chegou para consolidar o êxito de seus próprios candidatos, o que, salvo eventuais alianças no interior, nada tem a ver com interesses do PT. Portanto, os petistas têm alguma razão, quando não veem realizações dos ministros importados ou dos meteóricos visitantes do segundo escalão. É a realidade não analisada nas queixas domésticas, mas Lula precisa confessar que seu governo enfrenta a aventura da dissonância: está carente de discursos alinhados e alinhavados nas prioridades, muito menos nas intenções e objetivos políticos.


Simples puxões de orelha não são suficientes, porque a gênese do problema está na luta que os diferentes travam pela conquista de espaços no poder; e aí não há quem se disponha a fazer concessões, mesmo que seja para facilitar a vida do presidente e de um governo de que são parte. O que fazer, então? A dolorosa realidade parlamentar já mostrou que é preciso conviver com o inimigo, se os amigos são insuficientes. Um problemão.


Em situações passadas, ocorreram impasses dessa natureza, quando, sob severas cobranças, alguns ministros procuravam desviar as culpas para os órgãos de comunicação e sua índole oposicionista. Mas, no caso presente, seria até um acinte lançar mão de tal pretexto, pois nenhum presidente, antes de Lula, teve tanto apoio de jornais e de emissoras de TV, que também acolhem o discurso de sua querência, isto é, o combate, sem tréguas, ao inimigo Bolsonaro.


As grandes dificuldades vêm de dentro do próprio governo. Não há negar.





Anotações sobre 64



Corre a semana em que faculdades e alguns institutos de cultura política procuram aprofundar análises sobre 64 - aquele março de dessaudosa memória -, quando se abriu a porta para uma ditadura, que, com sangue e lágrimas, conseguiu a maioridade dos 21 anos. Os donos do golpe vinham trazendo a garantia de ser uma intervenção “rápida e cirúrgica”, para depois, garantia-se, dar-se a imediata restituição dos poderes aos civis. Promessa logo esquecida, não cumprida; nem mesmo pelo primeiro presidente militar, Castello Branco, que pregava a redemocratização já no ano seguinte de sua posse. Desmentiu-se, e logo aceitou a reeleição, ungida pela grande maioria do Congresso.


A vida dos cinco presidentes fardados deve figurar, sem dúvida, na pauta de quantos estão hoje empenhados em estudar esses passados 60 anos na vida nacional, quando, mais uma vez, nossa democracia escorregou e afundou. Oportuno lembrar, já que se estuda, que a análise daqueles que foram presidentes de ocasião, impostos, não pode se satisfazer com avaliação genérica, comum a todos eles. Não será correto, como querem alguns, condenar os cinco ao mesmo balaio da História, a menos que se cometa injustiça com o último deles, João Figueiredo, que prometeu e confirmou a reabertura das atividades político-partidárias e a anistia aos exilados. Os anteriores, se prometeram, passaram por cima da promessa.


Mas há outros aspectos, talvez em alguma forma até mais instigantes, com tudo para aguçar a curiosidade dos cientistas políticos. É o caso, nunca objeto de maior atenção, da influência indireta que exerceu, naquela época, sobre o ânimo das inseguras instituições nacionais, o episódio, poucos anos antes, da aproximação de mísseis nucleares que a Rússia pretendeu instalar em Cuba. Mesmo que interceptado, com a crise gerada pelo fracassado projeto de Moscou, acentuou-se o poder de influência continental de Washington. Com o quase conflito, também o recrudescimento do que se poderia chamar de “comunofobia”. Veio a pesada campanha de persuasão, que fazia sentir o comunismo transpirando por todos os poros do Brasil. Evidente exagero, alimentado pelo embaixador americano, Lincoln Gordon, que aqui desembarcou, a fim de cumprir o papel para o qual estava destinado: balançar e engordar os temores da nação sobre a ameaça vermelha, financiando políticos corruptos, líderes empresariais e imprensa, que se prestavam ao mesmo papel. A influência dos Estados Unidos principiou, portanto, na histeria causada por foguetes, que nem eram para nós.


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Agora, um ponto cuja importância não é menor. A historiografia definitiva haverá de contemplar, igualmente, se não com destaque ainda maior, a poderosa aliança que, sob o descuido do governo João Goulart, fez prosperar a direita radical e as alas mais conservadoras da Igreja e da UDN. Por que tão decisiva aquela associação? Porque foi, por essa via, que o golpe haveria de ganhar simpatias e aplausos de segmentos expressivos da classe média. Isso deve ficar claro, porque, se os militares usaram canhões para golpear a normalidade democrática, cabe lembrar que tiveram rápida acolhida, até extremas manifestações de desprendimento popular, como se deu com a campanha “Ouro para a democracia”, que pôs, em fila, milhares de senhoras, que rezaram o terço e entregavam anéis, alianças e colares valiosos “para salvar o Brasil do iminente perigo comunista”. Nunca se soube em que mãos foram parar essas joias.


Diretamente, o governo Goulart contribuiu para sua própria ruína, cometendo o grave erro de levantar bandeiras das chamadas reformas de base, “na marra”, cuja sustentação dependia, como depois se viu, de um festivo sindicalismo de esquerda, que pressionava o presidente; e, igualmente, dependia de força militar, que só saiu dos quartéis para derrubá-lo. O mal foi desafiar, a um só tempo, o complexo edifício da estrutura político-econômica do país, prometendo mexer, quase de afogadilho, com todas as pedras da administração pública, organização bancária, política urbana, além da reforma agrária, desnacionalizações e privatizações. Sem faltar uma política externa desafiadora. Mudanças estruturais - seja dito - necessárias, indispensáveis na época, mas deviam ser aplicadas por partes, em doses cuidadosamente prescritas; de forma que, realizadas as mudanças, entre uma e outras o país pudesse respirar. O conjunto das reformas, assim de afogadilho, contrariou a mesma prudência devida aos corpos doentes. Goulart, na onda da popularidade duvidosa, precipitou a cirurgia, que matou seu governo e custou caro às liberdades.


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