segunda-feira, 27 de março de 2017





FHC x Itamar


A propósito do novo livro do ex-presidente Fernando 
Henrique, no qual ele revive o episódio em que Itamar 
Franco foi vítima de uma cilada com a modelo Lilian Ramos,
durante distante carnaval, o ex-ministro da Justiça Alexandre
Dupeyrat nos envia a reflexão que se segue:


 “A política tem muitas facetas. Uma delas é o fato de os objetivos últimos visados pelos atores não raro serem escamoteados. O outro, não menos importante, é a peculiaridade de tratar-se de uma atividade onde a traição faz parte das regras do jogo. Certamente por isto diz-se que, em política, os meios justificam os fins.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está por lançar o 3º volume do seu livro de memórias presidenciais. Quando do lançamento dos dois primeiros volumes o fato não mereceu grande destaque na imprensa. Houve apenas o registro do alegado propósito do autor de contribuir para futuros estudos históricos. Na verdade, a isto se destinam memórias políticas.

Pouco ou quase nada do conteúdo dos livros foi dado a público conhecimento. Já relativamente ao terceiro volume, antes mesmo de estar disponibilizado nas livrarias, grande repercussão midiática é dada a certos episódios ligados ao lançamento do assim chamado “Plano Real”.

Ao que tudo indica, o autor distribuiu copias da sua obra, ainda inédita, a diversos jornalistas. Poder-se-ia imaginar tratar-se de uma estratégia de “marketing” para incrementar as vendas. O teor das matérias publicadas, entretanto, permite duvidar desta premissa.

O foco das reportagens está sistematicamente centrado, de um lado, na falta de compostura ética reinante no Congresso Nacional e, de outro lado, no comportamento “irresponsável” do Presidente a que servia (Itamar Franco).

Ao que parece, o autor se coloca num pedestal, acima de tudo e de todos, criticando, de forma veemente, a “podridão” e a “corrupção” do sistema político brasileiro e em especial “a insistência do PMDB na busca de cargos”. Sequer poupa ex-correligionários, como Ciro Gomes (então no PSDB), que qualifica de “mau-caráter”. Lembre-se que o político em questão foi convocado, em caráter emergencial, para suceder Ricupero após a desastrada entrevista que poderia ter colocado a pique o plano monetário de FHC (“o que é bom agente diz e o que é ruim agente esconde”). Graças à pronta intervenção de Itamar o estrago não foi maior.

FHC, ao que tudo indica, parece pretender surfar a onda anticorrupção que tomou conta do País após as revelações da Lava Jato.

O paradoxo é que seu governo não esteve imune ao fenômeno que, desgraçadamente para a nação, vem de longa data. Mas os ilícitos vindos à tona no curso da sua gestão presidencial (como o episódio envolvendo a diretoria do Banco Central) prefere debitar aos excessos do Ministério Público.  

E por que razão haveria o autor de enfatizar junto à opinião pública, justo neste momento, a personalidade “irresponsável” do presidente Itamar Franco? Chega ao ponto de dizer que foi “a ama-seca dele” e, nesta condição, impediu “mil crises, inclusive com os militares”.

Não é preciso muita perspicácia para entender o objetivo. Apresenta-se à nação como alguém que, em momento de grande dificuldade, soube conduzir o País corretamente, teve autoridade e habilidade para enquadrar um Congresso prenhe de más influências, soube eleger políticas adequadas a fim de assegurar a prevalência do interesse público e, acima de tudo, é pessoa capaz de dobrar até mesmo um Presidente desastrado a quem serve.     
  
Em suma: é a pessoa que o País necessita num momento de grave crise política, social e econômica.

Se a memória política serve aos estudos históricos, como toda versão, ideia ou proposta que se apresenta ao ser humano, deve ela ser submetida ao crivo do contraditório. E isto se impõe sobremaneira quando as memórias se destinam a ensejar um “recall” político.

Embora se compreenda a necessidade de criar “versões” fantasiosas para fatos pretéritos, há circunstâncias históricas onde a desconstrução do mito se impõe. Nem tanto para fazer justiça à imagem de pessoas que já não existem, mas, sobretudo, para que a opinião pública não se deixe iludir pela ideia de que o “homem providencial” é a solução de todos os problemas presentes. 

Itamar Franco nunca foi um irresponsável, muito menos pessoa carente de ama-seca. Foi um homem público sereno, de posições firmes e coerentes com as suas convicções ao longo de toda a vida.

Jamais foi um extremista. Nunca se apresentou nem atuou ideologicamente vinculado a esta ou àquela corrente. Não se exilou durante a ditadura. Tal como Ulisses Guimarães e tantos outros, recorreu aos meios legais disponíveis para lutar pela redemocratização do País.  
   
Foi, por duas vezes, prefeito eleito da sua cidade que, à época, sediava a 4ª Região Militar e de onde saíram as tropas do General Olimpio Mourão em 1964 em direção ao Rio de Janeiro.

Chegou ao Senado Federal pelo voto direto dos mineiros em 1974 derrotando o candidato do regime. Nunca foi suplente de ninguém, nem fez carreira na esteira de caciques políticos.

Itamar Franco teve, ao longo da sua vida pública, três grandes preocupações: buscar a realização do interesse público (nacional), fomentar a justiça social e preservar a moralidade administrativa. Isto, respeitando os postulados básicos do estado democrático de direito.

Sempre respeitou e foi respeitado pelo estamento militar. Pode-se dele discordar por razões ideológicas, à esquerda ou à direita, mas é ignóbil dizer (depois de morto) que foi um “irresponsável”.

Vamos ao episódio da crise militar, que teria sido evitada por FHC.

Segundo o memorialista, no curso de fevereiro de 1994, teria sido ele procurado pelo então Ministro-Chefe da Secretaria da Administração Federal (Romildo Canhim, já falecido) para relatar uma suposta reunião dos chefes militares onde o tema debatido teria sido o episódio Lilian Ramos.

O Presidente fora convidado a assistir ao desfile das escolas de samba no carnaval do Rio de Janeiro, tal como no ano anterior fora convidado para evento análogo no Recife. Em ambos os casos julgou que devia aceitar o convite por se tratar de um evento de grande expressão popular e relevância turística.

Itamar Franco sempre teve aversão a segurança pessoal. Para ele, o homem público carente de guarda costas era alguém que não tinha a confiança do povo. 

Aproveitando-se desta circunstância, tal como inúmeras outras pessoas, uma desconhecida “modelo”, denominada Lilian Ramos, teve acesso ao camarote presidencial e se fez fotografar ao lado do Chefe de Estado. O detalhe é que ela não portava roupas intimas. Como a foto foi feita a partir do piso da passarela, houve o registro (proposital e preordenado) da região púbica descoberta.      

A modelo ganhou a notoriedade que buscava e foi contratada para atuar no exterior. Internamente ficou a marca de um episódio para o qual o Presidente não contribuiu e do qual só veio a tomar conhecimento pela imprensa, no dia seguinte.

Segundo o memorialista, tal evento teria ensejado reunião dos “chefes militares” que concluíram faltar “firmeza” ao Comandante em Chefe das Forças Armadas (Presidente da República). Neste contexto, o Ministro Canhim (militar reformado) teria sido escalado para indagar do então Ministro da Fazenda se, no caso de deposição do Primeiro Mandatário da Nação, ele aceitaria continuar como titular da Pasta responsável pelo Plano de estabilização monetária. A resposta foi “nem por um dia”.    

É uma versão que se sustenta num diálogo havido com uma pessoa falecida (Canhim) e se reporta a uma reunião cujos participantes não são elencados (chefes militares).

Em suma, o episódio Lilian Ramos teria gerado uma grave crise militar, a ponto de cogitar-se o defenestramento do Presidente. Isto só não teria ocorrido graças à postura de FHC que se recusou a permanecer no cargo com outro Presidente.

Por um lado, passa-se a ideia de fidelidade canina ao Chefe da Nação; por outro lado, passa-se a ideia do reconhecimento da importância de FHC na corporação militar. Só não houve golpe porque ele disse que não permaneceria no cargo.

Pois bem, a fantasia da “ameaça” de golpe pode ser vista de um outro ângulo, mais objetivo e cartesiano.

É difícil crer que a alta cúpula das Forças Armadas tenha se reunido para tratar do episódio Lilian Ramos. Tivesse o Presidente envolvido em orgias ou atos de depravação até seria possível admiti-lo. Mas disto não se tratava e os fatos estavam bem claros: houve um lance de oportunismo na carreira de uma obscura “modelo” para o qual o Presidente não contribuiu.

Passemos agora à análise de outros fatos, concretos e reais, ocorridos na época e que de fato geraram insegurança na população civil e militar.

Em fevereiro de 1994 havia sim um clima de mal estar, não somente no seio castrense, mas também entre os assalariados. Era o mês de carnaval e também o mês em que viria a lume a primeira fase do Plano Real com o congelamento de preços e salários.

O público não tinha conhecimento dos exatos termos da medida provisória que seria publicada. Mas havia a memória do ocorrido nos planos anteriores: os preços são congelados pelo pico e os salários pela média dos últimos três ou quatro meses. Ainda que se faça pouco da inteligência alheia, a recordação do ocorrido no passado recente era o quanto bastava para gerar uma grande desconfiança e receio nos estamentos sociais assalariados (civis e militares).

Itamar era um homem de grande sensibilidade política e social. Tinha a convicção da necessidade de encerrar o ciclo inflacionário. Mas também estava convencido que isto não poderia ser feito a expensas dos assalariados.

Para assegurar a estabilidade democrática era preciso, pelo menos, evitar perdas aos que dependiam de salário, vencimento, soldo, aposentadoria ou pensão. Assim não pensavam os economistas e financistas. Entendiam que o ganho havido com o fim da inflação compensaria eventual perda nominal havida no momento da conversão dos estipêndios.

A “dificuldade imensa” a que FHC se refere para “fazer o real” tem a ver com a postura de estadista do Presidente Itamar; não com a sua suposta “irresponsabilidade”. A diferença entre o estadista e o político está precisamente no fato de que o primeiro tem um horizonte mais amplo do que o segundo. O político, no mais das vezes, está preocupado apenas com a próxima eleição, com a sua sobrevivência. O estadista se preocupa com as gerações futuras.

A Itamar foi oferecida, durante a revisão constitucional de 93/94 a emenda da reeleição, sem contrapartida, sem barganha, sem negociação. Não quis porque entendia ser um desserviço à democracia, ao processo político, à representação popular. Dizia que, com a reeleição, o mandatário, ao invés de governar, preocupar-se-ia apenas com a preservação do cargo.

É este homem que se qualifica de “irresponsável”.

Houve sim uma grande tensão em fevereiro de 1994. Não por causa de Lilian Ramos, mas por conta de um anunciado “achatamento” de salários, soldos, vencimentos, aposentadorias e pensões que adviria no primeiro momento do real. 

Itamar tinha um jeito peculiar de ser. Não gostava de nada às escondidas. Dos seus auxiliares não exigia submissão, mas lealdade. Entendia que o povo merecia respeito e por isto qualquer iniciativa governamental tinha que ser transparente, explicada às claras e sem subterfúgios. 

Pela relevância da Medida Provisória que indexaria preços e salários a uma moeda virtual (URV) quis que todos os Ministros das áreas que seriam diretamente afetadas tomassem prévio conhecimento e opinassem. Queria um consenso interno para que o projeto saísse do Executivo fortalecido. 

Ao contrário do que é dito, Itamar leu a MP da URV e constatou que, na conversão dos salários, poderiam advir perdas. Assim previa a redação original (que leu e entendeu):

“Art. 18. Os salários dos trabalhadores em geral serão convertidos em URV no dia 1º de março de 1994, de acordo com as disposições abaixo:
  I - dividindo-se o valor nominal vigente em cada um dos quatro meses imediatamente anteriores à conversão, pelo valor em cruzeiros reais do equivalente em URV, na data do efetivo pagamento, de acordo com Anexo I desta medida provisória; e
 II - extraindo-se a média aritmética dos valores resultantes do inciso anterior.”

O critério era extensivo aos vencimentos, soldos, aposentadorias e pensões.

Obviamente, quando a conversão se dá pela média o valor final é inferior do que o apurado na conversão pelo pico.

Precisamente por isto convocou os Ministros da Justiça, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, do Trabalho, da Previdência, do Planejamento e da Administração Federal para, em conjunto com o Ministro da Fazenda, examinar a minuta, especialmente no particular do critério de conversão dos vencimentos, soldos, salários, aposentadorias e pensões.     

E o consenso a que se chegou foi traduzido no parágrafo do seguinte teor:

“§ 8º Da aplicação do disposto neste artigo não poderá resultar pagamento de salário inferior ao efetivamente pago ou devido, relativamente ao mês de fevereiro de 1994, em cruzeiros reais, de acordo com o art. 7º, inciso VI, da Constituição.”

O critério foi extensivo aos vencimentos, soldos, aposentadorias e pensões.

É possível que o então Ministro da Fazenda tenha sofrido pressões dos tecnocratas contra o princípio da irredutibilidade dos ganhos decorrentes do trabalho ou da inatividade.

Mas esta foi a decisão de governo, com a qual todos concordaram, inclusive o titular da Fazenda.

Graças esta intervenção do então Presidente Itamar Franco o Plano Real teve ampla aceitação, tanto no campo civil como militar, além do meio laboral e de inativos. Passou no Congresso Nacional sem necessidade de barganhas ou troca de favores.

Denegrir a imagem alheia é grave, seja qual for a motivação interior. Quando se trata de pessoa falecida é covardia.


Cabe aos juridicamente legitimados adotar as providências que o caso requer".



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