terça-feira, 2 de janeiro de 2024

 



Heranças do ano que se foi

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))




1 - Poucos haverão de discordar. A crise da segurança das pessoas e do patrimônio foi o principal dos fracassos desse ano que acabamos de fechar. A começar pelo fato de o poder público tatear e titubear entre projetos requentados, sem saber exatamente por onde começar para enfrentar o problema. Nos grandes centros, o quadro continuou se agravando, em escala, sob o império do crime organizado, o que contrasta com aparelhos estatais desorganizados para a defesa dos cidadãos, embora sejam capazes de sugar impostos escorchantes, prometendo fazer o que não conseguem.

O Rio, que tem tradição de ver na cadeia os governadores que elege, é o melhor exemplo de uma realidade constrangedora: a corrupção institucionalizada e o envolvimento dos corruptos com o crime tornaram-se uma espécie de consórcio funesto, mantenedor de arsenais de armas contrabandeadas e drogas, sequestros, violência urbana e as milícias, que dividem poderes com a polícia. Daí para a insegurança total é apenas um átimo.

Cada ano que passa é o problema se agravando. Foi assim em 2023.

A novidade que talvez se deva considerar, entre tantas razões para o desânimo coletivo, é que nesse ano findo a Justiça passou a ser convocada, com maior insistência, a assumir rigor e intolerância com o crime. Menos frouxa, menos concessiva com os bandidos, mas tirando-lhes vantagens, como injustificáveis férias, “saidinhas” e engenhosos benefícios. Os juristas e o Congresso estão entrando num ano em que continuarão chamados a intervir, em nome de uma efetiva segurança.

(A primeira realidade da pena é o castigo. E não é totalmente justificável o argumento de que o criminoso é apenas vítima de uma sociedade injusta. O que dizer, então, dos carentes e miseráveis?, também injustiçados, e nem por isso assaltam e matam).

2 - Numa incursão no campo da dialética marxista, o presidente Lula definiu Flávio Dino, novo ministro que acaba de mandar para o STF, como um “comunista do bem”. O que permite supor, na lógica de seu raciocínio, a existência de comunista do mal. Quem seria esse? E, já que atribui a eleição do amigo maranhense à graça de Deus, talvez pudesse se instruir junto a prelados da Igreja, que o apoiam, para tirar a dúvida sobre esse inesperado envolvimento do Criador na decisão do Senado. Algo excitante, porque o presidente ainda não percebeu que o ideário marxista-leninista tem fundamentos opostos ao Cristianismo, que não se dá bem com o comunismo. E certamente a toga preta tem nada a ver com as vestes brancas de que nos fala o Apocalipse.

Em outra incursão interessante, muito à vontade para opinar sobre o Supremo, diferente de todos que o antecederam, o atual presidente aproveitou o mesmo clima festivo para dizer que ministros daquela corte não devem dar palpite sobre política, mas cuidar apenas dos autos. Algo que em outros tempos poderia ser interpretado como puxão de orelhas, um cala boca, não fosse ele tão bem entrosado com os juízes nas permanentes núpcias governo-tribunal. Lula deve ter feito a advertência, por sentir que navegar com desenvoltura nos mares da política é exatamente o que mais se tem feito naquele palácio vizinho.

3 - Em ano eleitoral sempre falta tempo para discussão e decisões sobre temas políticos de maior relevo, porque às urnas são conferidas todas as atenções, independentemente de partidos e dos candidatos engalfinhados. É o que tem tudo para comprometer o projeto do Senado de extinguir a reeleição de presidente da República, governadores e prefeitos. Portanto, é provável que nos próximos meses não se obtenha abrigo nas pautas parlamentares para o encaminhamento da matéria, não obstante a previsão que antecipa certa simpatia do plenário.

Prevê-se o voto contrário do PT, embora a iniciativa já tenha obtido o apreço de Lula desde 2007. Mais agora para não mudar de ideia, porque a pretendida extinção já não lhe causaria prejuízo, caso se dispusesse a disputar quarto mandato… A presidente do partido insurge contra o fim da reeleição, alegando tratar-se de um “retrocesso democrático”, mas equivoca-se, com toda certeza. O que a reeleição tem conseguido, ao longo da História política, é exatamente ofender a democracia, com terríveis projeto de continuísmo, passando por cima da moralidade, perpetuando executivos simpáticos à corrupção, favorecendo concessões pouco republicanas. O argumento contrário à realidade é pueril; perecível, não resiste aos argumentos.

4 - Nas últimas horas do ano, o Congresso decidiu, com passageiro constrangimento e sem remorso, elevar de R$ 900 milhões para R$ 5 bilhões o Fundão, mantido com dinheiro público para financiar a próxima campanha eleitoral dos que vão disputar prefeituras e vereança. Para tamanha violência não faltou o voto de deputados e senadores de todos os partidos, o que autoriza disseminar o desencanto dos brasileiros com seus representantes, onde quer que estejam.

Afora o avanço, para agravar, seguiu-se o argumento falacioso de lideranças, alegando que o financiamento das campanhas, se faz bem à democracia, nem consome além de 2% do orçamento da união; como se possível fosse atenuar o crime de lesão ao patrimônio na comparação com o que restou no cofre...

Essa farra acontece num momento em que o Brasil se revela empobrecido, doente, faminto, frágil, politicamente vulnerável. O que vale dizer: o crime que os parlamentares praticaram é estupro de um vulnerável.

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