terça-feira, 10 de junho de 2025

 

Remédio para tempos indigestos

((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

Indigesta, mas nem por isso descartável, a receita prescrita pelo presidente do Banco Central para que o Brasil tenha como suportar as agruras dos juros altos. Sugere que tenhamos estômago de crocodilo e queixo de pedra, faltando dizer que o mesmo remédio serviria para suportar a dispepsia causada por outros muitos problemas que afligem. Discreto, Gabriel Galípolo não buscou outros exemplos do seu imaginário zoológico para dizer que a política econômico-financeira já não tem mais coelhos para tirar de cartolas mágicas. Então, diante do risco de novas tempestades - quem sabe? - aconselharia enterrar a cabeça no chão, como ensinam os avestruzes precavidos, se as tempestades ameaçam. O doutor Galípolo é um técnico com tarefas e missões bem definidas, com o cuidado de não incursionar nas áreas políticas do governo de que faz parte, e onde também há dores reclamando tratamento; antes de tudo, reclamando bariátrica, para extirpar o excesso das gorduras. Mas ele sabe, com a autoridade que tem, que boa parte dos nossos males vem do descontrole de gastos, do hábito de esbanjar, da fatal tentação de gastar mais do que se arrecada. Sabe muito bem que é daí que resultam os problemas que pesam em sua mesa de juros altos e a inflação mal contida. Só mesmo importando um crocodilo para aguentar.

Reconheçamos. Se para nada mais servisse, sua palavra espirituosa ajuda a avançar em alguma reflexão sobre o momento atual.

Um sintoma para agravar tensões, não apenas o hálito amargo dos juros, é o fato de o Brasil se ressentir de unidade entre poderes e lideranças. Que tivessem, ao menos, algum alinhamento quanto a deveres e respeitos recíprocos. Ao contrário, aqui tudo se divide, tudo diverge, tudo aponta para caminhos opostos. Brasília é a grande orquestra dos desafinados.

Exemplos são muitos, porque os contrastes já fazem parte dos nossos dias, conosco deitam e conosco levantam. Se a polícia prende o traficante, a Justiça logo o libera, porque a magistratura passou a entender que impõe considerar o vitimismo como realidade acima da lei e da ordem. Qualquer detenção é suspeita, mormente quando se trata de cidadãos não brancos. Entrar ou não em favela tornou-se divergência de princípios entre juízes e delegados; e é onde a segurança balança.

Não se revela muito diferente o que salta das relações entre dois poderes, Supremo Tribunal e Congresso Nacional, quando este é acusado de lerdeza no tratamento das questões mais graves. Aos togados é o bastante para avançar sobre atribuições legislativas. Vestem-se de poderes que não lhe pertencem, os senadores e deputados reagem, mas só nos discursos, principalmente quando são feridos pelo STF na sempre fundada suspeita sobre o destino de emendas parlamentares. Para completar, Câmara e Senado alimentam contendas internas, principalmente quando discrepam interesses das bancadas evangélica e da bala.

No largo painel de contrastes nem escapa o Executivo. Interessante. Há ministros e outros altos funcionários que puxam a corda para a ponta de seus projetos pessoais, facilitados por uma base política pintada de cores diversas, que se misturam e confundem. A política conturbada e perturbada autoriza exigir - com licença para a insistência com que se trata do assunto - que o presidente da República assuma o controle da situação, procure vencer as múltiplas fragmentações, antes que nos precipitemos no abismo.

Esse tormento tem reflexos diretos no sentimento das pessoas, mesmo que em sua maioria elas não deem conta disso. Diante de incertezas e dos desencontros entre os poderes constituídos na desarmonia, vai se perdendo a confiança em quase tudo. Como se vivêssemos em deserto inóspito, terra sem homens e sem ideias, segundo a velha queixa do ministro Oswaldo Aranha.

(Então, confusos, tentamos, inconscientemente, improvisar heróis. Saímos em busca de valores de fora, como importar da ditadura da China alguém para nos ensinar como controlar as redes sociais; ou tirar do insinuante presidente Macron lições de compostura diplomática. E até em nossa glória antiga, o futebol, tivemos de buscar técnico no outro lado do oceano. Pior ainda, com o moral coletivo tão baixo, chegamos ao ponto de elege como padrão da rapaziada alguém que exalta o tráfico e canta música esquisita.)


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