sexta-feira, 11 de setembro de 2015

                               “Rua das horizontais”


( Notas breves para a história da prostituição em Juiz de Fora )


Wilson Cid



“De gôndolas, em sonhos belos,
desfilam nobres casais:
os rapazes de Martelos
e as moças da Henrique Vaz”
(Parabuneidas)


Aquelas velhas estradas que os pioneiros abriam, caminho das aventuras e da ânsia de descobrir riquezas e caçar escravos, jamais escaparam de um destino comum: os bandeirantes passavam e deixavam para trás as roças recém-plantadas, um posto de pousada e poucas mulheres que se dispunham a ficar para servir com o corpo a viajantes ávidos, que depois de longas jornadas traziam grandes apetites de comida e amor. Sempre foi assim, e nada faria com que o Caminho Novo de Garcia tivesse diferente sorte.

Pelo que sei, os primeiros cronistas que por aqui passaram preferiram ignorar esse detalhe da incipiente ocupação do vale do Paraibuna. Nada registraram, como se não tivessem visto ou experimentado mulheres que se dedicassem ao ofício do sexo. Haviam contudo, pelo menos na Rocinha da Negra, na divisa das províncias, onde eram frequentes as baldeações e as paradas de Tiradentes, que desde 1783 dava combate aos assaltantes da estrada, o bando de Joaquim “Montanha”, que ficou famoso pela crueldade. Havia mulatas que trabalhavam na pequena propriedade rural que o alferes tinha no lugar, e consta que alimentava especial preferência por elas.

De forma que pelo Caminho Novo homem que passasse podia ir ao prazer antes de segui a viagem de semanas para Vila Rica. A propósito, para confirmar tais visitas, sabe-se que nessa época eram comuns os casos de crianças que cresciam apenas com as mães, sem que conhecessem nem soubessem o nome do pai. O pai ia-se quase sempre para sempre.


2 - À medida em que a cidade crescia, conta o historiador Roberto Dilly, os “homens de moral” cuidavam de afastar para o mais longe possível as mulheres que se dedicavam à prostituição, removidas do centro, mas não tanto; afinal a distância reduziria a clientela. Esse jogo de inconveniência não deixava de ter uma pitada de hipocrisia no receituário do moralismo. Mas tinha de ser jogado, em nome das famílias e das jovens recatadas.

Em Juiz de Fora, primeiro foi a Santa Rita, que a demarcação das ruas condenou a ser a sede da zona boêmia, com seus buracos, lama, esgotos aparentes e casas paupérrimas com cerca de bambu, Eram tais casas o primeiro endereço dessa gente de “vida airada”, expressão criada por Ignácio Gama, nosso primeiro escrivão de órfãos.

Segundo Dilly, ali viveram algumas que ficaram famosas, como a quase negra Lima, a Aninha Tamanduá, Florência Gambá e Merência, sem faltar uma que a todos apavorava, Frutuosa, com fama de feiticeira. De reza cruzada por prostituta e feiticeira ninguém escapava.

Com o passar dos anos a Santa Rita foi dividir a tarefa com a Rua do Sapo, que depois se chamaria Conde D' Eu e hoje é Fonseca Hermes. Tanto dividiu, que logo se estabeleceu um diferencial na categoria das prestadoras de amor pago. É de Jair Lessa, em seu “Juiz de Fora e seus Pioneiros”, a explicação: na Sapo, as mulheres ”sofisticadas, louras, de pés macios, enfeitadas com colares e brincos emprestados pelas cafetinas; na Santa Rita, para os viajantes pobres, mulher de segunda classe, “escrachada e cachaçal”.



3 - Mas a zona se atrevia a atender homens um pouco além de suas calçadas, atingindo seu comércio a parte baixa da Liberdade (Floriano Peixoto), Hipólito Caron e Avenida Kascher, como também a ribeira do Paraibuna. Paulino de Oliveira, “Memórias Quase Póstumas”, informa que em certa época, lá pelos anos 30, o meretrício começava na Marechal Deodoro, em frente à Galeria Pio X, atingia a Batista de Oliveira, depois a Floriano e a Hipólito Caron. Famosas por ali eram Maria Repinica e Rita Espanta Patrulha, esta capaz de encarar a polícia em qualquer circunstância.

Na Rua do Sapo algo a denunciava: a terra amarelada. Pedro Nava confirmou, ao falar de Felisberto Soares Horta, casado com sua prima. Era proibido limpar as botinas antes de entrar em casa, porque a mulher queria saber por onde o marido havia andado. Se chegasse com sinais de terra amarela dava-se mal...

A proximidade com o rio custou caro a elas, pois facilmente as água das enchentes invadiam seus quartos. Desalojadas, sem produzir e sem comer, ocasiões em que esse conjunto de misérias fazia prosperar nelas certo temor de que aquilo era mesmo castigo que os céus enviavam a quem pecasse na luxúria. Podia até ser castigo, não o suficiente para regenerações, sempre raríssimas. Mas na madrugada de 27 de janeiro de 1922, primeira vez em que a terra tremeu em Juiz de Fora, muitas traçaram o sinal da cruz, invocaram a proteção de Deus e correram temerosas para o Milheiros (Largo Riachuelo), onde se julgavam a salvo.



4 - Dias de faturamento geralmente coincidiam com os fins de semana. Mas bons mesmo eram aqueles em que os operários recebiam o salário, porque enquanto os casados corriam para casa, onde dívidas e despesas os esperavam, os solteiros tomavam o rumo das mulheres. E elas já sabiam quando haveriam de trabalhar mais: “Dia da Mineira”, “Dia da Pantaleone”, “Dia da Meurer”. Cada fábrica tinha o seu dia de suprimento.

Não menor era a capacidade da Hipólito Caron de denunciar a longo prazo os seus habitués. Nava, no “Baú de Ossos”, identificou ali um viveiro de sífilis, tragédia que infelicitou o amigo Isador (sic), sempre cuidadoso para não ser flagrado nas escapadas à zona. Era membro da União dos Moços Católicos. Certa vez, conta, “foi contemplado com uma carga composta de gonorreia de gancho e uma cavalhada de provocar inveja aos melhores haras”. Situações bem comuns na “crônica prostiputaz”, como o memorialista definia a Rua do Alecrim. Dilly anotou “Rua da Alegria” e “Rua das Pecadoras”, sem dizer exatamente onde elas se situavam. Mas provavelmente aquelas tradicionais de sempre.



5 - As peripécias da prostituição floresciam a ponto de preocupar o bispado de Mariana, que enviou emissário para tomar providências e sacudir religiosos que viam esse e outros problemas sociais com olhar de paisagem. Porém, nem por isso as memórias do comércio do sexo deixariam de ganhar deliciosas crônicas de Murilo Mendes, poeta que aqui nasceu e viveu na infância e adolescência. Na Europa, lembrava-se daquele tempo em que a aristocrática Juiz de Fora era “um pedaço de terra cercado por todos os lados”, mas sem esquecer das prostitutas mais famosas, a começa por Desdêmona, vice-putain da cidade; não a primeira, porque a precedência não podia ser negada a Ipólita (sem H). Desdêmona, que ninguém ficou sabendo de onde veio, ”foi plantar suas coxas na rua do amor industrializado, excomungado”.

Bem antes, ficou o caso pitoresco do grande romancista Artur Azevedo, que aqui morou alguns meses, e se foi queixando-se de que Juiz de Fora é fria demais no inverno e quente demais no verão. Pois Artur acabava de assistir no teatro à peça “O Naufrágio do Vapor Porto”, e, faminto, pediu que lhe indicassem o lugar onde àquela hora da noite pudesse comer. Um gozador recomendou a “Maison Moderne”, e só ao chegar lá ele descobriu que era um prostíbulo de baixa categoria...

Foi também nosso o advogado Amanajós Alcântara de Vilhena Araújo, com justiça celebrado como o maior e mais encrenqueiro boêmio de Juiz de Fora em todos os tempos. Fiel vassalo das bebidas fortes, bastava-lhe um pouco do álcool diariamente consumido para promover os maiores transtornos. Temido pelas crianças e evitado por toda gente de bem, Amanajós não perdia oportunidade de visitar a zona, onde, no dizer de Murilo, “moravam as horizontais e ele horizontalizava-se a noite inteira”. Desgarrafadamente bêbado, livre depois dos exercícios de Afrodite, certa madrugada acabou adormecendo junto à jaula de um circo, sem cuidar que ela ficara mal fechada, desmaiou junto ao leão Marruzko. Para sorte sua, o felino dormia o sono de um ancião desdentado e vegetariano...



6 - Na velha Redação do Diário Mercantil, lá pelos anos 50, veteranos repórteres ouviam no seu plantão histórias sobre conhecidas prostitutas do triângulo formado pelas ruas Sapo, Liberdade, Hipólito Caron e, mais tarde, a Henrique Vaz, para onde foram empurradas, quando o delegado Abreu decidiu que não podiam mais ficar nas ruas centrais. Cuspindo fogo, foram para o outro lado do Paraibuna, condenação a que o folclore da cidade atribuiu alguns insucessos do delegado na política. Praga de puta. Mas acaba que a Henrique Vaz é que se celebrizou como a grande e última zona da cidade. Foi onde, já no começo do fim, celebrizaram-se as pernas de Tereza, perfeitas, torneadas e cobertas de penugem suave que fazia lembrar pêssegos da melhor procedência. O sobrenome de Tereza era Bezerra, não do batistério, mas para celebrar uma de suas habilidades. Tal como as vizinhas, manejava também com destreza a navalha com que se defendia dos desaforos dos gigolôs. Brigas eram comuns e diárias, principalmente depois do consumo de cervejas e cachaças do Bar Brasil. “Corre que aí vem o Dorigatti”, investigador da Policia, com terno e sapatos brancos contrastando com o preto do bigode bem rapado.

Contava-se ainda, com muita graça, a história da singular Aurora, que teve uma passagem meteórica por Juiz de Fora. Certo dia de junho de 1940 ela desceu do Rápído, trem da Central do Brasil, foi para um dos quartos alugados para encontros na Floriano. Do pouco tempo em que morou aqui, ficou a fama de que só conseguia atingir ou fingir o clímax do prazer cantarolando a estrofe do Hino Nacional, ato inconsciente que talvez resultasse de um distante avô, protagonista da Retirada da Laguna na Guerra do Paraguai. Deu-se que, certa noite, prestando na cama seus favores ao cabo Expedito, corneteiro do Regimento, este não menos cioso das posturas cívicas recomendadas no quartel, pôs-se de pé, nu, com a mão e todas as demais parte do corpo em posição de sentido ao ouvir o primeiro sinal da estrofe o Hino. À inesperada cena de patriotismo seguiu-se o insucesso das boas intenções que o coitado acabara de trazer do quartel.



7 - Foram as aventuras e tragédias encenadas nos quartos de biombos de Desdêmona e Ipólita (sem H), da Florência Gambá, de Tereza e quantas alugavam o corpo para uma vida quase invariavelmente curta e trágica que se construiu a crônica da prostituição em Juiz de Fora. A “vida airada” foi desaparecendo aos poucos. As ruas da boêmia ganharam novas funções e biografias. Zona virou coisa demodê, e os que precisavam daqueles serviços ganharam outros endereços, ao ar livre no descampado da Titia no Aeroporto ou em companhia das moças que vinham trabalhar no K-2 de dona Carmem Maranhão.

Em meados da década de 60, na Radio Industrial, José Carlos e eu vivíamos o Repórter da Madrugada, com o carro de reportagem tentando descobrir onde estava a notícia naquelas horas quase mortas. Quanta vez o fato estava na Henrique Vaz!, velho domicílio daquelas pobres mulheres, damas de uma rua em fim de carreira, decadente, cenário apagado de incríveis histórias. Mas ainda a tempo de conhecer e entrevistar o legendário Juvenal, com seus oitenta e tantos anos, metade dos quais dedicados às “horizontais” com invulgares façanhas. Mas dele nada mais havia além da simbólica presença e velhas lembranças. Pobre Juvenal. Pendia inerte a veneranda tripa.






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